De Paraty
Do ponto de vista dos autores que ocuparam o palco principal na 15ª Festa Literária de Paraty, que termina neste domingo (30), a plateia em nada se diferenciava do público de uma missa na Igreja Matriz Nossa Senhora dos Remédios. Exceto pelos audiofones da tradução simultânea e pelos aplausos, a imagem das câmeras que mostravam os "fiéis" era a de uma celebração da Igreja Católica.
Toda a diferença era percebida ao olhar para o espaço do altar, transformado para ser o palco principal da Flip: ali o sagrado e o profano conviveram durante quatro dias como o que Pilar del Río, a viúva de José Saramago, definiria como "um milagre laico".
No depoimento sobre resistência feminina, Pilar reafirmou seu ateísmo, disse que não se sentia "nem viúva nem desolada". O mediador brincou que para casar-se com ela teria de "mudar um pouquinho a orientação sexual", e os espectadores caíram na gargalhada – cenas improváveis em um templo católico.
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Maior estranhamento ainda provocaria a performance de Luiz Antônio Simas, que cantou um ponto do exu Seu Sete da Lira na mesa em que falou sobre o subúrbio de Lima Barreto, o homenageado da 15ª edição de uma Flip que esteve ameaçada pela crise, mas conseguiu se reinventar e saiu melhor que a encomenda.
Para caber no orçamento, a tenda dos autores, estrutura provisória montada nas últimas edições, foi substituída pela Igreja Matriz, com metade da capacidade para o público pagante. Quase em frente, em um espaço coberto, e bem maior, foi possível assistir gratuitamente a todos os debates pelo telão, em confortáveis cadeiras que, ao contrário da Matriz, estiveram com 100% de ocupação.
Como nas edições anteriores, o difícil era escolher a que assistir, tal a riqueza e a diversidade da programação distribuída por diferentes pontos do Centro Histórico. Eram pelo menos 11 endereços, com atrações simultâneas. Em todos, fila para entrar, gente em pé ou sentada no chão. Novidade neste ano, um dos espaços mais disputados, a Casa Amado e Saramago, foi cenário de uma conversa descontraída entre Pilar del Río e Paloma Amado, filha de Jorge Amado e Zélia Gattai.
Amigas, as duas se uniram no projeto da Casa Amado e Saramago e na edição do livro que reúne a correspondência de dos dois maiores escritores de língua portuguesa de todos os tempos. O título é extenso: Jorge Amado e José Saramago Com o Mar por Meio –Uma Amizade em Cartas (Companhia das Letras), lançado na Flip. A 15ª Flip jogou luz sobre a obra de Lima Barreto, autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma e de outros títulos menos conhecidos, relançados agora por diferentes editoras. A vida do homenageado, daquelas que se poderia dizer sem preocupação com o clichê que "daria um filme", é contada em detalhes pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz no livro Lima Barreto – Triste Visionário (Companhia das Letras).
Foi Lilia quem apresentou o escritor na noite de abertura, dividindo o palco com o ator Lázaro Ramos, intérprete de passagens da obra de Lima Barreto. A homenagem a Lima Barreto serviu de mote para que a Flip abordasse questões como discriminação, preconceito, empoderamento. Nunca antes a festa de Paraty teve tantos escritores negros entre os autores convidados, nem tantas mulheres nas mesas de debates. A curadora Joselia Aguiar mostrou que é possível driblar a crise fazendo as escolhas certas e conseguiu mesclar emoção e razão na seleção do elenco de participantes.
O público nas ruas, nos eventos e na fila do caixa da Livraria Travessa calaram os profetas do Apocalipse que, volta e meia, decretam que, com a superficialidade das redes sociais, o fim da literatura está próximo.O sucesso da festa, que durante quatro dias tomou as ruas de Paraty, lotou a rede hoteleira, fez girar a roda da economia local e atraiu organizadores de outros eventos do gênero. Do Rio Grande Sul, a Jornada de Literatura de Passo Fundo deu a sua receita do que está fazendo para garantir, com menos dinheiro, a qualidade que a tornou conhecida no Brasil inteiro.
Uma estrela na plateia
O grande personagem da Flip 2017 não foi um autor famoso traduzido em dezenas de idiomas. Foi Diva Guimarães, uma professora negra de 77 anos. Paranaense de Serra Morena, Diva pediu a palavra na mesa A pele que habito, com Lázaro Ramos e a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques.
Neta de escravos, contou que foi a primeira de sua família a ter acesso à educação. Levada por missionários para um colégio interno aos cinco anos, ouviu uma freira contar aos alunos que Deus fez um rio onde todos teriam que tomar banho. As primeiras que se banharam "naquele maldito rio" eram as mais inteligentes e, por isso, ficaram brancos.
– Já nós, os negros, éramos preguiçosos e tínhamos chegado tarde, quando só restava lama no rio. Só conseguimos lavar as palmas das mãos e dos pés, por isso elas são claras – continuou.
Lázaro Ramos precisou de um lenço para enxugar as lágrimas. A plateia delirou quando a professora Diva contou que a mãe lavava roupa para outras pessoas em troca de lápis e cadernos para que ela pudesse estudar. Disse que a libertação dos escravos não existe plenamente até hoje, falou do racismo em Curitiba e contou histórias de discriminação. Ao final da sessão, já na praça, foi cercada por pessoas pedindo fotos, abraços e autógrafos.