Tem gente que torce o nariz — ou fecha os ouvidos — para as versões que Seu Jorge fez de canções clássicas de David Bowie, mas eu estou entre os que acham essas covers um charme a mais de A Vida Marinha de Steve Zissou, filme que a RBS TV exibe na virada deste domingo (1º) para segunda, no Corujão I, às 2h20min.
Lançado em 2004, este foi o terceiro longa-metragem do diretor e roteirista americano Wes Anderson, realizador indicado sete vezes ao Oscar. Por Os Excêntricos Tenenbaums (2001), concorreu ao prêmio de roteiro original, categoria na qual também disputou com Moonrise Kingdom (2012), na companhia de Roman Coppola. O Fantástico Sr. Raposo (2009) e Ilha dos Cachorros (2018) brigaram entre as animações, e O Grande Hotel Budapeste (2014) valeu a Anderson três indicações: melhor filme (como produtor), diretor e script original (com Hugo Guinness).
O Steve Zissou do título é um explorador marinho inspirado no célebre Jacques Cousteau e interpretado por um ator-fetiche do diretor, Bill Murray, presente em todas as obras desde Três É Demais (1998) — até nos desenhos animados, como dublador. No começo do filme, em um festival, Zissou exibe a primeira parte do documentário em que procura um certo "tubarão-jaguar", que teria matado seu melhor amigo, Esteban.
Com prestígio em baixa, será difícil para Zissou arranjar financiamento para concluir o projeto com sua equipe — que inclui sua mulher (Anjelica Huston), um alemão (Willem Dafoe) e uma roteirista de topless. A crise no navio Belafonte (construído em estúdio da Cinecittá, na Itália) aumenta com a chegada de uma repórter inglesa (Cate Blanchett) e de um piloto de avião (Owen Wilson) que diz ser filho do documentarista. E só piora quando surgem piratas filipinos.
Wes Anderson exibe em A Vida Marinha de Steve Zissou algumas de suas características: o conflito entre o filho e o pai negligente ("Eu odeio pais, e eu nunca quis ser um", diz o protagonista), as legendas de apresentação, os comentários narrativos sobre a própria história, um uniforme para os personagens (o gorro vermelho, por exemplo), o humor agridoce, a escalação de um ótimo elenco e até os momentos mágicos.
Tal qual a epifania que é o coro final de Hey Jude, dos Beatles, irrompendo quando o falcão Mordecai alça voo no céu de Nova York em Os Excêntricos Tenenbaums, é de arrepiar quando sobe o volume de Life on Mars?, na voz de David Bowie, na cena em que Zissou, após conhecer seu suposto filho, caminha até o extremo do Belafonte.
De Garrincha a Pelé
Bowie, morto em 2016 e personagem de uma cinebiografia que estreia em novembro nos EUA, também se faz presente na voz de Seu Jorge. O artista carioca participa como ator e como músico. Wes Anderson o conhecia como o Mané Galinha de Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles.
O brasileiro ganhou um papel com nome em homenagem a outro craque do futebol, Pelé dos Santos. É um especialista em segurança que, nas horas vagas, relaxa a tripulação cantando ao violão, quase que como bossa nova, músicas de David Bowie — em português. Entre elas, Ziggy Stardust, Life on Mars?, Rebel Rebel, Changes e Starman (esta, na versão da banda gaúcha Nenhum de Nós), faixas que Seu Jorge apresentou em turnê nos Estados Unidos, em 2016, e voltou a cantar em uma live realizada em agosto, durante a pandemia.
— Eu nunca tive certeza se eram traduções precisas — admitiu Anderson em entrevistas. — Mas ele capturou o espírito de Bowie e o do filme.