Antes ou depois de ver Dahmer: Um Canibal Americano (2022), minissérie em 10 capítulos criada por Ryan Murphy e Ian Brennan e protagonizada por Evan Peters que estreia nesta quarta-feira (21) na Netflix, a dica é ler a história em quadrinhos Meu Amigo Dahmer, escrita e desenhada por Derf Backderf e publicada no Brasil pela editora DarkSide, em 2017, com tradução de Érico Assis (288 páginas, R$ 69,90). É uma espécie de prequel, para usar o termo em inglês que anda na moda em Hollywood (vide as séries House of the Dragon e O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder).
Nascido em Milwaukee, no Wisconsin (EUA), Jeffrey Dahmer (1960-1994) assassinou 17 homens e garotos entre 1978 e 1991. Seus crimes eram particularmente hediondos, envolvendo violência sexual, necrofilia e canibalismo.
Antes disso, ele foi um adolescente como qualquer outro: tinha problemas familiares, sentia-se inadequado, desejava pertencimento, sofria bullying na escola, precisava lidar com seus impulsos sexuais e suas pulsões de morte. Por que uns sobrevivem e outros, como Dahmer, sucumbem às trevas? Já era possível identificar sua personalidade nociva? Onde pais e professores falharam? Qual a influência dos colegas de aula? Como é descobrir que um amigo virou um dos mais aterrorizantes serial killers dos Estados Unidos?
Essas são algumas das perguntas formuladas em Meu Amigo Dahmer, HQ que valeu a Backderf, hoje com 62 anos, o prêmio de Revelação no tradicional Festival de Angoulême, na França, em 2014. (E que foi adaptada em um filme dirigido por Marc Meyers e estrelado por Ross Lynch, o Harvey Kinkle do seriado O Mundo Sombrio de Sabrina.)
Backderf começa a responder algumas de suas perguntas logo nas primeiras linhas do prefácio. Meu Amigo Dahmer é o resultado de suas inquietações a respeito daquela amizade vivida na década de 1970. A HQ nasceu em 1991, poucas semanas após os assassinatos virem à tona, e levou 20 anos para ser concluída, entre idas e vindas, versões reformuladas, entrevistas e pesquisas (há um catatau de quase cem páginas de extras, como notas, fotos de escola, cenas deletadas e esboços). O livro acompanha Dahmer dos 12 anos até o momento em que ele, como diz o autor, salta no abismo, concentrando a narrativa no adolescente "que combatia as ideias tenebrosas que borbulhavam em sua mente".
Com um traço a um só tempo sombrio e cartunesco, Backderf estabelece uma atmosfera de estranhamento, melancolia e suspense no cenário — uma pequena cidade do Estado de Ohio. Dahmer circula pela zona rural, onde morava, e pelos colégios Eastview e Revere. Em casa, era, de certa forma, invisível aos pais, que brigavam o tempo todo. Na escola, mantinha a invisibilidade — tímido, solitário, evitava interagir e fazer amigos (e aguentava em silêncio os eventuais valentões). Até que, sem que houvesse aviso, uma transformação ocorreu. Dahmer passou a fingir ataques epilépticos e a imitar a fala vagarosa e as convulsões de pessoas com paralisia cerebral. Caiu nas graças de um grupo de colegas _ virou uma espécie de mascote, a ponto de Backderf e seus amigos adotarem "dahmerismos", como cumprimentar uns aos outros com a voz arrastada.
Boa parte da pancada provocada pela leitura de Meu Amigo Dahmer vem da fricção entre o que Backderf descreve e o que ele pensa. Nas passagens em que relata atividades do "fã-clube Dahmer", ele esforça-se em desfazer a impressão de que se aproveitava de Jeffrey como se fosse gerente e plateia de um circo de horrores: "Nosso interesse por Dahmer pode parecer de má-fé, mas não era. Não estávamos desprezando o cara. Afinal, a gente não estava muito mais alto na escala social. Ele nos entretinha. E só".
A todo instante, o autor busca descolar-se de Dahmer, limpar-se de qualquer responsabilidade em relação ao pavoroso destino do amigo que pudesse lhe ser imputada — "Há um número incrível de indivíduos que vê Jeffrey Dahmer como uma espécie de anti-herói, um garoto vítima de bullying, que contra-atacou a sociedade que o rejeitava. Isto é um absurdo", escreve no prefácio. "Dahmer era um infeliz, um ser problemático, cuja perversidade estava quase além da compreensão. Tenha pena, mas não empatia". Mas não é justamente empatia o que Backderf se propõe, ao tentar se colocar no lugar de Dahmer e procurar compreendê-lo emocionalmente?
Meu Amigo Dahmer jamais servirá para atenuar os crimes do chamado Canibal de Milwaukee, mas não deixa de ser um pedido de perdão — se não ao próprio Dahmer, pelo menos às suas vítimas. É como se, nesses 20 anos entre o primeiro rascunho e a publicação, Backderf tivesse remoído uma culpa coletiva: ok, Dahmer tinha uma mente maléfica e um caráter duvidoso, mas também foi negligenciado pelos adultos da história — seus pais e os professores _ e nunca foi abraçado de fato pelos amigos (que nem se consideravam amigos). Quando Backderf ouve a notícia da prisão do ex-colega, ele tapa a boca e diz: "Ah, meu Deus, Dahmer, o que foi que você fez?". Mas é como se estivesse dizendo: "Ah, meu Deus, Dahmer, o que foi que nós fizemos?".