Michael Myers? Hannibal Lecter? Coringa? Que nada. Os vilões que me assustam são os da vida real, retratados em abundância pela Netflix em documentários como os recentes Conversando com um Serial Killer: O Palhaço Assassino, que reconstitui a história do estadunidense John Wayne Gacy (1942-1994), e Segredos e Crimes de Jimmy Savile, sobre o DJ e apresentador de TV britânico que morreu em 29 de outubro de 2011, dois dias antes de completar 85 anos. Sim, ele nasceu no dia do Halloween.
Esses personagens exercem um estranho fascínio. Como se fossem as bruxas e os monstros dos contos de fada, nos avisam de que o mal existe. Por sorte ou pelo exímio trabalho da polícia, às vezes há punição. Mas em outras o caçador não chega a tempo de salvar a Chapeuzinho Vermelho.
A referência à menina que se embrenha na floresta para levar doces à vovó não é gratuita. Os chocantes crimes cometidos contra crianças, adolescentes e mulheres parecem ser os que mais atraem realizadores e espectadores. Vide a longa lista de documentários disponíveis na plataforma de streaming:
- Sequestrada à Luz do Dia (2017), sobre uma adolescente que foi duas vezes (em 1974 e em 1976) vítima de sequestro pelo vizinho supostamente inofensivo;
- Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy (2019), sobre o homem charmoso que sequestrou, estuprou e matou pelo menos 30 jovens entre 1974 e 1978;
- O Desaparecimento de Madeleine McCann (2019), sobre a garotinha inglesa desaparecida em 2007, durante as férias da família em Portugal;
- Atleta A (2020), sobre as mais de 100 ginastas da seleção dos EUA sexualmente abusadas por um médico da equipe;
- O Caso Gabriel Fernandez (2020), sobre um menino de oito anos torturado e assassinado pela própria mãe e pelo namorado dela, em 2013;
- Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha (2020), sobre o sujeito aparentemente comum que assassinou a esposa e as duas filhas em 2018;
- O Estripador (2020), sobre a caçada ao maior assassino serial britânico, que só tinha como alvo o sexo feminino;
- Jeffrey Epstein: Poder e Perversão (2020), sobre o bilionário investidor que era um predador pedófilo;
- Cena do Crime: O Assassino da Times Square (2021), sobre um homicida que desmembrava o corpo de adolescentes e mulheres, na Nova York do final da década de 1970;
- Night Stalker: Tortura e Terror (2021), sobre um serial killer, estuprador, sequestrador, pedófilo, assaltante e satanista que apavorou as regiões de Los Angeles e de São Francisco entre 1984 e 1985.
Agora em abril, estrearam Segredos e Crimes de Jimmy Savile, documentário em duas partes dirigido por Rowan Deacon e riquíssimo em material de arquivo, e O Palhaço Assassino, minissérie em três capítulos assinada por Joe Berlinger (o mesmo de Ted Bundy e Times Square), que traz a público, pela primeira vez, as gravações em fita-cassete de entrevistas dadas por Gacy à equipe de defesa dele entre novembro de 1979 e abril de 1980, enquanto aguardava julgamento.
Como os títulos deixam entrever, há uma sinistra conexão entre Jimmy, de um lado do Atlântico, e Gacy, do outro. Também há diferenças cruciais: o inglês de Leeds, até onde se sabe, nunca matou, enquanto o estadunidense de Chicago tirou, entre 1972 e 1978, a vida de pelo menos 33 rapazes com idades de 14 a 21 anos (que, antes de morrerem, foram submetidos a sevícias indescritíveis). Jimmy jamais foi preso — aliás, seus crimes de violência sexual contra centenas de crianças, adolescentes e mulheres jovens só foram devidamente investigados depois que ele faleceu. Gacy, julgado e sentenciado em 1980, passou 14 anos no corredor da morte, até sua execução por injeção letal.
O que une os dois? Ambos mantinham a persona monstruosa sob uma fachada de homem bem-sucedido nos negócios e com espírito comunitário. Eram Lobos Maus em pele de cordeiro.
Gacy, que foi casado por duas vezes (de 1964 a 1969 e de 1972 a 1976) e teve dois filhos, era dono de uma empresa de reformas e construção, a PDM Contractors — as iniciais correspondiam a Painting (pintura), Decorating (decoração) e Maintenance (manutenção). No papel de empreiteiro, atraiu algumas de suas vítimas. Membro do Partido Democrata, organizava festas de verão, integrou o comitê de iluminação pública do bairro em que morava e foi nomeado diretor de uma parada ligada à imigração polonesa em Chicago — por conta desse cargo, chegou a conhecer e ser fotografado com a então primeira-dama dos Estados Unidos, Rosalynn Carter, em 6 de maio de 1978. Também juntou-se a um clube de palhaços que se apresentava em eventos beneficentes e hospitais infantis, o Jolly Joker, no qual criou seus próprios personagens: Pogo e Patches. Graças à atuação como palhaço, tinha facilidade para ludibriar garotos fazendo o que chamou de "o truque da algema".
Jimmy, que sempre desconversou sobre namoradas, depois de fazer sucesso como DJ se transformou em um dos mais famosos apresentadores de TV na BBC, a rede pública britânica de rádio e televisão. Entre seus programas, estavam o musical Top of the Pops (1964-2006) e o infantil Jim'll Fix It (1975-1994), no qual se dedicava a realizar desejos enviados por crianças via correio. Tornou-se amigo da família real (a ponto de ser uma espécie de conselheiro do príncipe Charles) e, em 1990, virou Sir, a mais alta honraria da Coroa. Pesaram a seu favor a influência da então primeira-ministra Margaret Thatcher e o trabalho de caridade desenvolvido por Jimmy — destaca-se a arrecadação de fundos para o hospital Stoke Mandeville. Em todos os ambientes, fossem estúdios de TV, fossem dependências hospitalares, ele cometia abuso sexual.
Gacy, pelo menos no primeiro momento, e Jimmy, praticamente a vida toda, foram protegidos sob o escudo de "cidadão de bem" — nesse sentido, os dois documentários também servem de alerta sobre como o sucesso e a popularidade podem nos iludir, desviar nosso olhar. Quando a polícia começou a investigar Gacy, o advogado Sam Amirante foi à delegacia:
— John Gacy é um sujeito legal. Por que estão o seguindo?
— Um garoto desapareceu, e achamos que ele está envolvido.
— Estão loucos. Garoto desaparecido? Pegaram o cara errado.
No caso de Jimmy, a dimensão pública, a relação com a realeza e a notória filantropia tornaram gigantesca a blindagem. Ou seria a cegueira da imprensa? Ou a omissão de empregadores e colegas? Ou até a corrupção policial? Rumores sobre o nocivo comportamento sexual sempre existiram, mas eram rapidamente varridos. O pior é que, como as imagens de arquivo revelam, volta e meia o astro dava pistas fortes. Ainda que em tom de piada, descrevia agressões a garotas, por exemplo. Em um hospital, disse maliciosamente: "Sou um ajudante voluntário. Às vezes, quando ninguém está olhando, ajudo as moças". Em uma entrevista à apresentadora de TV Gloria Hunniford, ele literalmente abriu o jogo, quando ela elogiou trabalho beneficente que ele realizava.
— Não — retrucou Jimmy. — Isso é tudo fachada. Isso é tudo mentira.
Em diversas aparições na TV, ele brincava: "Meu julgamento está marcado para a próxima quinta-feira". Era a formação católica falando alto: acreditava piamente no Juízo Final. Ao contrário de John Wayne Gacy, que nunca demonstrou um pingo de remorso pelos crimes que cometeu (consta que suas últimas palavras foram "beije meu rabo"), Jimmy Savile parecia ter um peso na consciência. No seu entendimento, as ações de caridade contrabalançariam os atos de perversidade. Em suma: Jimmy Savile era um homem que fazia o bem para, com certa paz de espírito, fazer o mal.