Rasgue e Jogue Fora (Otorvi i Vybros, 2021), que entre sexta (29) e domingo (1º) terá três exibições em Porto Alegre, dentro do Fantaspoa, suscita o debate: após a invasão da Ucrânia, filmes russos devem sofrer boicote? A guerra justifica represálias no âmbito cultural?
Por causa do conflito no Leste Europeu, a Disney, a Sony e a Warner suspenderam as estreias de suas produções na Rússia. Uma companhia de balé da Sibéria teve canceladas suas apresentações no Reino Unido. Uma universidade de Milão, na Itália, chegou a anunciar que não mais realizaria um curso sobre o escritor Fiódor Dostoiévski (1821-1881), autor de obras monumentais da literatura, como Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov. Outras interdições beiram o ridículo, como mudar o nome do drinque Moscow Mule ou tirar do cardápio o estrogonofe.
Daí que o professor de Filosofia e cientista político Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, publicou, no dia 9 de abril, o seguinte post no Facebook: "Por que sou contra boicotes culturais, como esse que ora se promove contra autores russos, do passado e do presente? Porque, com raríssimas exceções, a cultura promove a paz e os melhores valores da humanidade. Evidentemente, obras que promovem o ódio são outra coisa, mas acabam sendo poucas. (...) A cultura enriquece as pessoas. Lembro quando (o filósofo e escritor francês) Sartre decidiu não ir aos EUA por causa da guerra do Vietnã. Quem ele prejudicou com isso? A esquerda norte-americana, os jovens, os que combatiam a guerra! (...) Isso também vale, em larga escala, para a cooperação científica. Excetuando quando ela serve à guerra. O que já aconteceu muito. Mas notem que, enquanto por bastante tempo o grande exemplo de ciência no século 20 foi a bomba atômica, hoje é mais comum comemorar a decifração do DNA. E o grande aporte da ciência se tornou melhorar a vida, não matar. Em suma, repito: sou contra a invasão russa da Ucrânia. Mas não confundo Putin com a cultura russa".
Em reportagem do jornal The New York Times, Jane Duncan, acadêmica da Universidade de Joanesburgo que estudou o tema do boicote cultural como agente de mudanças políticas, lembrou do que ocorreu com seu país à época do Apartheid. Inicialmente, os ativistas determinaram que a África do Sul não poderia ser palco para artistas estrangeiros, nem sul-africanos poderiam se apresentar no Exterior. Mais tarde, percebeu-se que essa restrição prejudicava ainda mais a cultura da África do Sul, já sujeita à censura pelo governo segregacionista. O boicote foi amenizado no final dos anos 1980, para que os artistas pudessem fazer turnês no Exterior e espalhar a mensagem sobre os males do Apartheid.
No caso do cinema russo, há um complicador, segundo relatou ao New York Times Kirill Sokolov, o diretor e roteirista de Rasgue e Jogue Fora: a grande maioria dos filmes, mesmo aqueles que criticam veladamente (ou até abertamente) a administração do presidente Vladimir Putin, depende de recursos estatais. É por isso que alguns festivais pequenos, como o Black Nights, da Estônia, e o de Vilnius, na Lituânia (ambos países vizinhos), decidiram atender ao pedido de boicote lançado pela Academia Ucraniana de Cinema. Segundo essa entidade, a exibição de títulos russos cria "a ilusão do envolvimento da Rússia nos valores do mundo civilizado". Já os grandes festivais, como Cannes e Veneza, adotaram um meio-termo: não vão receber delegações oficiais nem a presença de pessoas ligadas ao governo, mas também não vão banir cineastas e atores.
Há controvérsias. Se Algirdas Ramaska, o diretor da mostra de Vilnius, argumenta que o isolamento total pode conscientizar a população russa a cobrar de Putin a retirada das tropas, o cineasta ucraniano Sergei Loznitsa, autor de Donbass (2018), um filme sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia na região homônima, disse que "as pessoas não podem ser julgadas pelo seu passaporte":
— Quando ouço pedidos para banir filmes russos, eu penso nos meus amigos russos, gente decente e honrada. Eles são vítimas desta guerra tanto como nós somos.
Uma possível exceção é o maestro russo Valery Gergiev, que foi demitido da Orquestra Filarmônica de Munique, na Alemanha, e renunciou do cargo de presidente honorário do Festival de Edimburgo, na Escócia, a pedido dos organizadores. Ele comandou, em 2014, o concerto comemorativo aos 15 anos do governo Putin, sempre foi um dedicado defensor de sua reeleição e, embora não tenha se pronunciado em relação à invasão ocorrida em 24 de fevereiro, apoiara movimentos anteriores da Rússia contra a Ucrânia.
Por outro lado, Kirill Sokolov, que vai participar de uma sessão comentada de Rasgue e Jogue Fora no 18º Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre (veja detalhes logo abaixo), pode ser considerado uma vítima. Metade da família do diretor e roteirista russo é ucraniana — pelo menos até o mês passado, a avó materna ainda morava em Kiev. Sokolov inclusive assinou petições online pelo fim da guerra. E Rasgue e Jogue Fora definitivamente não é uma peça de propaganda para a Rússia de Putin. Mesmo assim, o longa-metragem foi excluído às vésperas do Glasgow Film Festival, realizado entre os dias 2 e 13 de março na Escócia. O evento também limou da programação The Execution (Kazn), do igualmente russo Lado Kvataniya — que é publicamente um opositor de Putin e da guerra e cujo trabalho sofre com a censura em seu país.
Nascido em 1989, Sokolov é mestre em Física e em Tecnologia em Nanoestruturas. Começou a fazer curtas por hobby, até decidir lançar seu primeiro longa-metragem, Por que Você Não Morre? (Papa, Sdokhni, 2018, também conhecido como Morra!). É uma mistura de suspense, comédia e violência, em que, diz a sinopse, "Andrei, um detetive e o pai mais horrível do mundo, reúne em seu apartamento um grupo terrível de pessoas: sua filha atriz, um bandido furioso e um policial iludido. Cada um tem um motivo para querer vingança". O título valeu a Sokolov o prêmio de melhor direção no Fantaspoa de 2019, quando também esteve em Porto Alegre.
Agora, ele volta com outro filme em que tensão, riso e sangue se equilibram. Em Rasgue e Jogue Fora, a radiante Viktoriya Korotkova interpreta Olga, que, após passar quatro anos na prisão, busca um recomeço. Antes de mais nada, ela quer pegar de volta sua filha, Masha (Sofya Krugova, um pequeno arraso), que estava aos cuidados da avó materna, Vera (Anna Mikhalkova). Mas a vovó não acha isso uma boa ideia, e vai tentar convencer Oleg (Aleksandr Yatsenko), ex-marido de Olga, a impedir que mãe e filha fiquem juntas.
Parece a trama de um dramalhão sofrido, mas sob o olhar e as mãos de Sokolov o filme se revela uma espécie de adaptação dos clássicos desenhos animados de Tom & Jerry, do Papa-Léguas e do Pica-Pau, entre outros personagens. A violência corre solta, só que ninguém morre. Em vários momentos, a brutalidade chega a ser cartunesca. Contribui para a pegada humorística o figurino brega-chique, que inclui um tapa-olho.
O que não significa que Rasgue e Jogue Fora seja infantil ou bobo. Além de extremamente bem filmado (há planos que são dignos de moldura), não deixa de tecer comentários que podem ser entendidos como políticos — "Se quer mudança, vá pintar a cozinha ou algo assim", diz um personagem, em uma frase que soa como crítica irônica à perpetuação de Putin no poder. Se Vera e Olga, duas mães duronas, aludem à Mãe Rússia, Masha simboliza o futuro, sendo, na opinião da avó, "mais corajosa" (para confrontar o poder, por exemplo) e "mais inteligente" (para eleger políticos, quem sabe?). E o rio de sangue deságua em palavras de esperança e de paz que ficaram subitamente mais atuais: "Eu acredito que, nos apoiando e inspirando uns aos outros, podemos começar uma nova vida".
As sessões de "Rasgue e Jogue Fora"
- Sexta, 29/4, às 18h, na Cinemateca Capitólio, com a participação do diretor e roteirista russo Kirill Sokolov
- Sábado, 30/4, às 16h, na Cinemateca Capitólio
- Domingo, 1º/5, às 19h30min, na Sala Eduardo Hirtz