Duas sessões musicadas do centenário clássico Nosferatu (1922) — às 18h e às 20h, com participação do músico Carlos Ferreira e ingressos já esgotados — abrem nesta quinta-feira (14) o 18º Fantaspoa. Depois de duas edições virtuais, em 2020 e em 2021, por causa da pandemia de covid-19, o Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre volta a ser presencial. Até 1º de maio, 90 longas-metragens e 97 curtas serão exibidos por cinco salas da Capital: Cine Grand Café, Cinemateca Capitólio, Farol Santander, Instituto Ling e Sala Eduardo Hirtz. A partir do dia 22, haverá também uma etapa online, gratuita, na plataforma Darkflix. E o evento terá 37 debates, com mais de 60 convidados (veja detalhes da programação e informações sobre ingressos em fantaspoa.com).
Com direção geral e produção executiva de João Pedro Fleck e Nicolas Tonsho, o Fantaspoa é o principal festival na América Latina para filmes de fantasia, ficção científica, suspense e terror — as obras passeiam por outros gêneros, como a animação, a comédia e o musical. É tão prestigiado, que muitos títulos fazem aqui sua estreia mundial, latino-americana ou brasileira.
Há muitos motivos para você assistir ao festival. O primeiro deles é a oportunidade de dar a volta ao mundo: os longas são assinados por diretores de 37 países, de todos os continentes. Tem filme produzido no Uruguai (Morto com Glória), em Cuba (Coração Azul), no México (Protegido, Irmão), na Letônia (Upurga), em Ruanda (Neptune Frost), em Singapura (Tiong Bahru Social Club) e na Austrália (A Estufa).
A viagem também pode ser metafórica: além de nos apresentar paisagens pouco habituais no circuito comercial do cinema, com as da Indonésia (Preman) e as da República Dominicana (Limonada), os filmes do Fantaspoa procuram expandir os horizontes do espectador. Trafegando por gêneros e lidando com ameaças sobrenaturais, mistérios policiais, abduções alienígenas, experimentos genéticos, mentes atormentadas, revoluções místico-tecnológicas e futuros distópicos, mostram-se um bem-vindo desafio. Instigam a descobrir caminhos e a propor interpretações, em vez de colocarem na mesa uma dieta convencional, pronta para consumo universal.
Um terceiro motivo é que, para a maioria das atrações, trata-se de uma situação agora ou nunca. São raros os longas do Fantaspoa que depois têm lançamento comercial no país. Dos mais de cem apresentados em 2020 e 2021, dá para contar nos dedos (Aviva, A Cabeleireira, História do Oculto, Zana) os que estão disponíveis em plataformas de streaming.
Dito isso, listo abaixo os primeiros seis da edição 2022 que considero imperdíveis. Quase todos são também imprevisíveis. E permitem uma volta ao mundo.
Baby Assassins (2021)
Sessões no dia 19/4, às 16h, na Cinemateca Capitólio; e nos dias 23/4 e 28/4, às 14h, nas duas ocasiões, também na Cinemateca Capitólio
O Fantaspoa é a porta de entrada latino-americana deste filme escrito e dirigido por Yugo Sakamoto, que também assina A Aldeia do Dragão Amarelo, outra produção japonesa presente no festival. Já exibido no tradicional Fantasporto, de Portugal, o filme acompanha as desventuras de duas estudantes do Ensino Médio que trabalham como matadoras de aluguel. Por ordem dos chefes, Chisato (Akari Takaishi) e Mahiro (Saori Izawa) precisam arranjar um emprego de fachada e morar juntas em um apartamento (onde uma estante está forrada de mangás). As duas tarefas mostram-se difíceis. Ou elas não aguentam as convenções, ou são simplesmente incompetentes, ou não conseguem lidar com o tédio, ou as diferenças de personalidade cobram seu preço — Chisato, que é calada e, quando fala, fala para dentro, define-se como uma sociopata; Mahiro é tagarela, expansiva, radiante.
Baby Assassins faz uma cruza entre a comédia adolescente (não tão engraçada quanto poderia ser, mas autêntica no retrato da faixa etária) e o filme de artes marciais. Essa porção é bem menor do que se imagina, mas a primeira cena, em uma loja de conveniência, e o combate contra um integrante da Yakuza valem o ingresso. Ambos são protagonizados pela personagem de Takaishi e, de tão intensos, fazem achar que respingou sangue na gente — e que certamente os atores envolvidos devem ter saído com vários hematomas (ou até com alguma fratura).
The Beta Test (2021)
Sessões nos dias 19/4 e 21/4, ambas às 14h, na Cinemateca Capitólio; e no dia 28/4, às 18h, também na Capitólio
O estadunidense Jim Cummings é um faz-tudo: escreve, dirige, produz, edita, atua e, se for preciso, opera a câmera. Até trilha sonora já compôs. Depois de realizar Thunder Road (2018) e O Lobo de Snow Hollow (2020), em The Beta Test — até então inédito na América Latina — ele divide o roteiro e a direção com PJ McCabe. Cummings é o protagonista, Jordan Hines, um agente que representa atores e atrizes em Los Angeles. Ele está prestes a casar com a doce Caroline (Virginia Newcomb) e a fechar um importante contrato, mas sua vida entra em parafuso ao receber um convite anônimo em papel roxo. Trata-se de um passaporte para uma aventura sexual em um quarto de hotel.
A partir daqui, é melhor não avançar muito na sinopse, que vai equilibrar doses de suspense com uma sátira a Hollywood — um mundo onde, em todos os níveis, fingir, enganar e mentir são verbos correntes. No papel de um macho alfa que exala toxicidade e não esconde sua fragilidade, Jim Cummings consegue ser tanto desprezível quanto engraçado. Contribui para isso o rosto do ator, que tem um quê de Billy Crudup (do filme Quase Famosos e da série The Morning Show) e caninos bastante proeminentes — ele parece um vampiro, pronto a sugar os outros em nome de seus desejos.
Capitão Astúcia (2022)
Sessão comentada no dia 20/4, às 20h45min, no Cine Grand Café; sessão no dia 21/4, às 16h30min, no Cine Grand Café
Em estreia mundial, é um título raro na cinematografia brasileira. Como o nome sugere, trata-se de uma aventura de super-herói — mas um super-herói sui generis. O primeiro longa do diretor e roteirista Filipe Gontijo, de Brasília, tem como protagonista Santiago (Paulo Verlings, das novelas Em Família e Rock Story), um ex-astro mirim que se vê pressionado pelo pai a reviver a carreira musical como Kid Pianino. Para evitar disso, ele se refugia em uma casa geriátrica junto ao avô, papel do veterano Fernando Teixeira, 80 anos, visto em Aquarius (2016) e King Kong em Asunción (2020). O choque geracional tem mão invertida. É o personagem mais velho quem demonstra uma energia incessante, um senso de humor inabalável, um enorme amor pela vida e uma criatividade invejável: nasce da sua imaginação o tal Capitão Astúcia, que tem um quê de Dom Quixote — aliás, o nome de seu interesse romântico, Dulce (Nívea Maria), remete a Dulcineia de Cervantes.
Entre aventuras mais comezinhas e o enfrentamento com o vilão Akira Laser, um tecladista dos anos 1980/1990, o filme faz uma homenagem bacana ao universo das histórias em quadrinhos, inclusive na forma narrativa. Não é um Vingadores: Ultimato, mas também está longe de ser um Liga da Justiça — ainda que oscile no ritmo da trama e que haja momentos visualmente confusos, Gontijo demonstra personalidade e foco narrativo.
Matando o Eunuco Khan (2021)
Sessões no sábado (16), às 16h30min, no Cine Grand Café; no dia 19/4, às 14h30min, no Cine Grand Café; e no dia 28/4, às 20h45min, no Cine Grand Café
Ah, o Irã... Sempre trazendo desafios recompensadores ao Fantaspoa. Em 2020, tivemos Uma História Cabeluda, de Amir Homayoun Ghanizadeh, que começa como uma comédia ambientada em uma barbearia, até de repente ser tomado por elementos políticos e policiais, até embaralhar a realidade encenada e a imaginação do protagonista. Em 2021, foi a vez de O Grande Salto, de Karim Lakzadeh, sobre uma mulher que, ao receber a notícia de que seu filho, dado como morto, está vivo, viaja pelo interior do país na companhia do cunhado e de três excêntricos artistas de circo — em uma jornada que se mostrará merecedora de vários adjetivos: linda, triste, filosófica, aventureira, política, metafórica.
Agora, o diretor e roteirista Abed Abest apresenta Matando o Eunuco Khan, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Slamdance, um festival de Park City, no Utah (EUA), dedicado a cineastas emergentes. A sinopse diz o seguinte: "O serial killer pretende matar tanto, que o sangue escorrerá pelas valas da cidade. Para atingir esse objetivo, ele desenha um plano em que vítimas matam outras vítimas". Mas ainda que o sangue, em uma clara reverência a O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, inunde a casa onde um pai (Vahid Rad) mora com suas duas filhas, Nasrin (Sara Mohammadi) e a pequena Ahoo (Mah-Sima Karbari), não espere uma obra a la Jogos Mortais (2004). Não há um assassino serial, mas uma assassina serial: a guerra. A trama se passa durante o conflito entre o Irã e o Iraque (1980-1988), mas evita particularizações em nome de um suposto apelo universal.
Suposto porque este não é um filme de fácil compreensão. A narrativa não é linear — inclusive há um momento em que tempos distintos se fundem (simbolizando a perpetuação do medo e da matança) —, e são raríssimos os diálogos que possam explicar as coisas (a primeira fala só surge ali pelos 10 minutos de projeção). O negócio é sentir, deixar-se dominar pela força das imagens (como a de uma escada invisível) captadas pelo diretor de fotografia Hamid Khozouie Abyane — que alterna planos estáticos com tomadas feitas via grua ou drone — e embaladas pela ressonante trilha sonora composta por Christophe Rezai. Como escreveu o crítico Jared Mobarak no site The Film Stage, à época do Slamdance Festival: "Cada momento de beleza é substituído pelo horror".
Neptune Frost (2021)
Sessões nesta sexta-feira (15), às 20h45min, no Cine Grand Café; no domingo (17), às 16h30min, também no Cine Grand Café; e no dia 21/4, às 14h30min, de novo no Cine Grand Café
Concorrente no troféu Camera d'Or, para diretores estreantes, e à Palma Queer no Festival de Cannes de 2021, este é um dos títulos mais imperdíveis do Fantaspoa, que promove a sua estreia na América do Sul. O filme foi realizado pelo casal Saul Williams, músico, poeta e ator dos Estados Unidos, e Anisia Uzeyman, atriz e cineasta de Ruanda — país incrustado na África Oriental onde ocorreu um genocídio, em 1994, e onde Neptune Frost foi rodado, tendo no elenco ruandeses e artistas do vizinho Burundi.
Trata-se de uma mescla de musical afrofuturista, romance queer e ficção científica politicamente engajada. A história está ambientada em um vilarejo próximo a uma mina de coltan, mistura dos minerais columbita e tantalita que é muito utilizada na fabricação de celulares, notebooks e afins. Os personagens principais são o mineiro Matalusa (vivido por Kaya Free), que, após a morte do irmão, Tekno, por um guarda, decide escapar das condições precárias de trabalho (e que depois, em um trocadilho genial, será chamado de Martin Loser King), e Neptune, intersexual em fuga — o papel é ora interpretado por Elvis Ngabo, ora por Cheryl Ishejar. Matalusa e Neptune vão interagir com tipos alegóricos: Memória, Inocente, Psicologia.
Os 105 minutos de duração são vibrantes, variando imagens aéreas com closes que incluem olhares diretos ao espectador. O idioma também varia, indo do suaíli ao inglês e ao francês, heranças dos colonizadores. Uma das canções do início diz assim: "Vamos hackear / Os direitos à terra e à propriedade / As leis de direito e autoridade / A história bancária / Vamos questionar o negócio da escravidão e o livre trabalho / Vamos hackear / A ambição e a ganância / O tratamento de uma fé em detrimento de outra". Mais adiante, Neptune Frost vai questionar a visão eurocêntrica de mundo ("Eles pensam como o livro deles manda", "A verdade não é uma teoria que pode ser aprisionada num livro"), o imperialismo do empresariado estadunidense — "Fuck, Mr. Google!" — e a nossa própria postura como ocidentais cujo consumo está baseado na exploração africana: "Usam nosso sangue e suor para se comunicar uns com os outros / Mas nunca escutam nossa voz".
Soul of a Beast (2021)
Sessões no domingo (17), às 20h45min, no Cine Grand Café; no dia 22/4, às 14h30min, também no Cine Grand Café; e no dia 29/4, às 16h30min, outra vez no Cine Grand Café
Recordista de indicações à premiação da Academia Suíça de Cinema, realizada no final de março, Soul of a Beast ganhou apenas três das oito categorias disputadas: ator (Pablo Caprez), fotografia e música original. Estas duas últimas têm a participação do polivalente Lorenz Merz, que também assina como roteirista, diretor, coeditor e um dos produtores.
Se a gente resumir ao mínimo, a trama pode parecer convencional — um triângulo amoroso que se forma entre os jovens desajustados Gabriel (papel de Caprez, novato em longas), seu melhor amigo, Joel (Tonatiuh Radzi, também estreante), e a namorada dele, Corey (Ella Rumpf, do filme Raw, de 2016, e da série Tokyo Vice, recém lançada pela HBO Max). Mas há elementos extras que conjuram uma atmosfera constante de risco e de imprevisibilidade. Para começar, Gabriel tem um filho pequeno, o encantador Jamie (Art Bllaca), de quem cuida sozinho, com muito carinho mas com escassos recursos. As referências ao cinema da Ásia Oriental, como a narração em estilo samurai pelo ator japonês Yoshi Amao e uma citação visual de Anjos Caídos (1995), filme de Hong Kong dirigido por Wong Kar-wai, incluem uma afiada espada katana. O trio envolve-se com drogas alucinógenas, anda de moto em alta velocidade, empreende uma invasão noturna ao zoológico de Zurique... Essa aventura vai resultar na fuga de alguns animais — uma girafa, um pavão, dois pumas —, o que deixa a cidade em um estado de tensão registrado pelos programas noticiosos da TV. Turbinada pela atuação inebriante de Ella Rumpf, a personalidade de Corey tem aquela mistura explosiva de urgência e inconsequência: "Sempre tive essa sensação, desde criança. De que não há tempo. De que tenho de fazer tudo agora", ela diz a Gabriel quando o convida para viajar junto para a Guatemala, de onde desceriam de carro para a Bolívia, depois para a Patagônia, até chegar à Terra do Fogo.
"Nada dura" — eis outra frase (fatalista? Profética?) a ressoar em Soul of a Beast, filme que se robustece desde já como um dos melhores do ano graças também às escolhas estéticas de Lorenz Merz. Ao filmar na proporção 4:3, que diminui a área de tela (é um quadrado, e não o tradicional retângulo), o diretor cria não apenas um ambiente claustrofóbico, sufocante. Também se permite aproximar mais a câmera dos rostos e dos corpos dos personagens, que preenchem o quadro com uma intensidade arrebatadora, mesmerizante.