Cinema

Desamparo e necropolítica

Grande vencedor do Festival de Gramado em 2020, "King Kong en Asunción" leva seu grito de afeto ao cinema

Longa entra em cartaz em duas salas de Porto Alegre nesta quinta-feira

William Mansque

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ArtHouse / Divulgação
Andrade Júnior, que interpreta o Velho, morreu em 2019 e teve em sua homenagem um Kikito póstumo de melhor ator

Vencedor de quatro Kikitos no Festival de Cinema de Gramado de 2020, incluindo o de melhor filme, King Kong en Asunción entra em cartaz em Porto Alegre nesta quinta-feira (2). O filme será exibido no Espaço Itaú de Cinema, às 18h, e na Cinemateca Paulo Amorim, às 18h30min. 

Rodado entre a Bolívia e o Paraguai, além de ter uma sequência gravada no interior de Pernambuco, King Kong en Asunción é um road movie dirigido pelo pernambucano Camilo Cavalcante. É o segundo longa de ficção do diretor, que antes havia realizado A História da Eternidade (2014), além de curtas e documentários. 

O longa acompanha um assassino de aluguel conhecido como Velho (Andrade Júnior). Após realizar mais um "trabalho" na região desértica do Salar de Uyuni, ele parte para o Paraguai com o objetivo de encontrar a sua única filha, que nunca conheceu. Também espera rever a mãe dela, a única mulher que amou. Cansado e com remorso da vida que leva, quer se aposentar. Quer buscar o afeto que sempre lhe faltou. Ele tem movimentos lentos, costuma caminhar pesadamente, como se carregasse um fardo. A viagem também tem como destino o seu interior, com tom de despedida e desemparo. 

Quem acompanha o Velho é uma entidade onipresente, que pode ser interpretada como a própria morte. É uma voz onisciente, em guarani, que se manifesta no filme pela narração em off realizada pela atriz Ana Ivanova (As Herdeiras). Essa narração reflete sobre a história e os sentimentos do protagonista, ampliando a interpretação e adicionando uma camada literária ao filme. Não é à toa que o texto narrado pela voz foi escrito por Natalia Borges Polesso e traduzido para a língua indígena por Lilian Sosa. Camilo diz que sentiu a necessidade de o filme ser narrado em guarani para dar voz  a um povo que vem sendo exterminado desde a colonização.

Autora de livros como Controle (2015) e A Extinção das Abelhas (2021), Natalia trabalhou no texto após o filme ser rodado. Para ela, a voz da narradora se contrapõe ao Velho, que é bruto e calado.

— Parece que a ternura é impossível nele. Essa narradora é dura, mas é terna. Tentei focar nesse contraponto, nessas dicotomias — diz a escritora gaúcha. — Gostei muito de trabalhar com esse magnetismo. Ora os polos se atraem, ora os polos se afastam. Talvez "magnetismo" seja a palavra chave da relação entre narradora e personagem.  

Grito de afeto, canto do cisne

O projeto de King Kong en Asunción começou em 2007, durante um festival de cinema em Nova Iguaçu (RJ). Camilo conheceu o ator Andrade Júnior no evento. Brincalhão e alegre, o artista fez uma performance de gorila que chamou a atenção do cineasta. Ali, teve um estalo.

A partir disso, Camilo começou a desenvolver o roteiro ao longo dos anos. Procurou trazer a alegoria de um King Kong em busca de afeto em Assunção, em vez de Nova York. 

— Todos os afetos que ele mantinha foram sendo massacrados. Ele é um subproduto da falta de afeto. Cresceu cheio de ódio, e a falta de afeto gera mais ódio. É algo que vemos bastante hoje em dia em todo o mundo, muito discurso de ódio — explica Camilo. 

Além disso, o cineasta queria que o grito do gorila fosse político também. King Kong en Asunción refere sutilmente a necropolítica — poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer.

— O filme traz as consequências de uma colonização nefasta, preconceituosa, excludente, cujos efeitos a gente vê hoje na prática com o que está acontecendo no país. Quanto sangue não segue sendo derramado com a disputa de terra? Se você for ver, a necropolítica já vem junto com a nossa colonização, dado o extermínio de povos — destaca o diretor.

King Kong en Asunción é também o canto do cisne de Andrade Júnior, que morreu aos 74 anos em 2019. Tendo inspirado a premissa da obra e sendo um dos principais incentivadores do projeto, ele não assistiu ao filme pronto. Andrade entrega um trabalho exuberante como o Velho, tanto que foi premiado postumamente com o Kikito de melhor ator. É um matador taciturno e complexo, diferente daqueles estereótipos do cinema americano à la Charles Bronson.

— Ao longo de 10 anos, Andrade foi ativo e completamente disposto. Depois que conseguimos a verba e fomos fazer o filme, após tanto tempo se preparando, a coisa soou muito natural para ele. Foi intenso. Ao mesmo tempo, Andrade revive nas telas com seu talento e interpretação poderosa — pontua Camilo.


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