Não pode haver dúvida de que o longa paraguaio As Herdeiras, de Marcelo Martinessi, foi a produção mais consagrada no recente Festival de Gramado. Deixou a serra gaúcha com prêmios em seis categorias da mostra latina: melhor filme, direção, roteiro, atriz (Kikitos para o trio central, Ana Brun, Margarita Irún e Ana Ivanova) e os troféus do júri da crítica e do júri popular.
– Nos alegrou muito ganhar esses prêmios. Em primeiro lugar, pelo nível do festival, e também pela repercussão positiva que a premiação teve no Paraguai em um momento muito importante. Uma lei de cinema foi aprovada no Paraguai no dia 5 de julho passado, está em processo de regulamentação, e uma notícia como essa nos ajuda a ter visibilidade e a fazer com que as autoridades entendam o quanto é importante que nosso país seja reconhecido por algo positivo como o cinema – disse o diretor em entrevista a Zero Hora.
Agora, As Herdeiras tenta obter no circuito comercial brasileiro a mesma recepção calorosa com que foi brindada no festival.
Na trama, Chela (Ana Brun) e Chiqui (Margarita Irún) vivem uma vida problemática. Ambas vêm de famílias abastadas, mas, arruinadas e acossadas pela crise econômica, agora vendem os requintados objetos e mobílias que receberam de herança de suas famílias. Chiqui, a mais extrovertida, é quem organiza a rotina do casal, tanto a social (na primeira cena, ela praticamente arranca sua companheira da cama para ambas irem a uma festa) quanto a financeira. Chela, a mais retraída, não gosta de sair de casa, tem medo de dirigir e parece ter uma completa dependência da parceira. Até que, devido a alguns papéis mal assinados, Chiqui é condenada à prisão por fraude fiscal, e Chela é obrigada a deixar a segurança de seu casulo doméstico decadente e redescobrir a si mesma no exato momento em que parecia ter perdido tudo.
– Para uma mulher que sempre esteve encerrada em seus privilégios, essa crise seria uma oportunidade de sentir a vida com mais proximidade. Quase como se o coração dela voltasse a bater com força. Senti que esse personagem central de Chela era quase como uma pessoa morta, trancada, imóvel, e alguma coisa acontecia que a fazia sair dessa comodidade e a obrigava a se mover - diz o diretor.
Esse renascimento se dá pela superação de medos e inseguranças. Antes assustada na direção de um automóvel, Chela passa a ser uma espécie de motorista para algumas de suas vizinhas mais velhas. Nessa nova atividade, também vem a conhecer Andy, uma exuberante mulher mais jovem que faz reflorescer o desejo na apagada protagonista.
As Herdeiras, de certo modo, segue uma tendência forte do cinema recente da América Latina, a da reflexão ficcional sobre os rumos de um continente imerso em uma grave crise financeira. O que muda no foco da estreia de Martinessi na direção de longas é a abordagem. Enquanto outras obras presentes no próprio Festival de Gramado, como os brasileiros Mormaço e A Voz do Silêncio, lidam com personagens de classes médias e menos favorecidas sobrevivendo à crise, Martinessi decidiu lançar um olhar à vida de aparências das classes mais confortáveis.
– Nesse caso, o que eu queria abordar eram pessoas das quais sou mais próximo. Sou de uma classe privilegiada no Paraguai, que é um país muito injusto, no qual há uma classe dominante que até hoje segue mantendo privilégios por meio de grandes injustiças tributárias e a partir de uma grande injustiça social. É um mundo do qual me sinto mais próximo, mas também, por outro lado, queria falar das margens dessa classe. Não queria enfocar os que dominam e tomam as decisões, mas as pessoas que sofrem à margem, a partir, nesse caso, de uma crise financeira e da sua opção sexual.
Favorecidas por sua condição de mulheres de classe alta, Chiqui e Chela são um casal sem que isso escandalize as pessoas próximas. Já no Paraguai real, a escolha de um casal de mulheres como centro da narrativa provocou polêmica na conservadora sociedade local.
– O filme foi bem recebido pela imprensa e pelo público, mas, lamentavelmente, não muito bem por algumas autoridades. Quando a equipe do filme foi recebida para uma homenagem no Senado do Paraguai, após ser premiado no Festival de Berlim (Urso de Prata de melhor atriz para Ana Brun), senadores conservadores decidiram não comparecer, e uma das senadoras de um partido conservador gritou ofensas para Ana Brun, sem conseguir sequer entender a diferença entre uma atriz em um papel e em sua vida pessoal. Isso nos fez perceber o quão atrasadas estão as autoridades com respeito à sociedade em que vivemos – conta Martinessi.
As Herdeiras
De Marcelo Martinessi
Drama, Paraguai/Alemanha, 2018, 95min, 12 anos.