Tradicionalmente, o Festival de Cinema de Gramado reflete nos discursos de premiação, além dos agradecimentos de praxe, também os anseios de realizadores, atores e técnicos que sobem ao palco . Não foi diferente em sua 46ª edição, encerrada na noite deste sábado (25). Um assunto que permeou as falas foi o novo edital da Agência Nacional de Cinema (Ancine), que estabeleceu regras de financiamento baseadas em uma pontuação a partir de critérios mais comerciais do que artísticos — o autor de um sucesso de bilheteria, por exemplo, teria mais chance de obter recursos do que o realizador de um curta-metragem. Vários cineastas vestiram na premiação a camiseta "Ancine, eu existo", pintadas ao longo da tarde de sábado.
A grande festa do cinema latino-americano consagrou Ferrugem e Benzinho na mostra competitiva de longas brasileiros. O primeiro venceu na categoria de melhor filme, além de faturar os kikitos de melhor desenho de som e roteiro. Já Benzinho recebeu mais estatuetas, quatro no total. Entre os filmes estrangeiros, a sensação foi As Herdeiras, já consagrado no Festival de Berlim, que deixou a serra gaúcho com seis kikitos.
Os curtas-metragistas premiados manifestaram seus reparos ao projeto da Ancine. Ao receber o Kikit de melhor curta por Guaxuma, Nara Normande desabafou:
- Curta é filme. Curta de animação é filme. Pelo amor de Deus, né.
O protesto ganhou coro com os participantes dos longas.
- Comecei como curta-metragista. Esse prêmio é a todos os realizadores de curtas-metragens nessa batalha. Ancine, curta metragem é filme - destacou Aly Muritiba, diretor de Ferrugem receber o kikito de melhor desenho de som .
Mais tarde, ao receber o troféu de melhor roteiro, Muritiba ressaltou:
- Ferrugem teve uma equipe composta 70% por mulheres. Isso não foi por acaso, foi deliberado. A indústria é muito excludente com elas.
Adriana Esteves, no ar com a novela Segundo Sol, foi a vencedora do kikito de atriz coadjuvante, por Benzinho. Ela não compareceu à premiação. Quem recebeu o troféu foi Karine Teles, protagonista e roteirista do longa, que sublinhou:
- Adriana entrou no filme de peito aberto, cheia de amor para dar. É genial.
Bastante ovacionado pela plateia, Osmar Prado se emocionou ao receber seu Kikito de melhor ator. Em 10 Segundos Para Vencer, ele interpreta Kid Jofre, pai e treinador do boxeador Éder Jofre (vivido por Daniel de Oliveira).
- Aos 71 anos, 60 de carreira, é a primeira vez que concorro ao prêmio de melhor ator.
Em meio a agradecimentos, Osmar lembrou do protagonista do longa:
- Vou serrar o Kikito ao meio e dividir. Não existia o Éder sem Kid, então não pode existir Osmar sem Daniel.
Após fazer coro às reinvindicações dos realizadores de curtas, Prado fez um desabafo político:
- Pelo restabelecimento do estado democrático do país. Abaixo às conduções coercitivas, as torturas psicológicas, as delações premiadas e a injusta prisão do presidente Lula.
Uma parte do público aplaudiu, enquanto outra o vaiou. Ele respondeu aos apupos:
- Podem vaiar.
E complementou sua fala dividindo novamente as reações do público:
- (Lula) Injustamente trancafiado nas masmorras de Curitiba pelo juiz Sérgio Moro.
Em seguida, Karine Teles foi consagrada como melhor atriz por sua atuação em Benzinho. Ao receber o prêmio, fez um primeiro agradecimento:
- Obrigada, Osmar. Muito obrigada.
Karine refletiu sobre uma das mensagens do longa dirigido por Gustavo Pizzi.
- Benzinho é sobre tantos trabalhadores inviáveis do nosso país, tantas mulheres que carregam as famílias nas costas no nosso país e fazem o mundo andar para frente - garantiu.
A animação A Cidade dos Piratas, de Otto Guerra, recebeu uma menção honrosa dos jurados. Em sua fala, Otto dividiu o público novamente entre vaias e ovações.
— Parabéns, Osmar pela coragem. Vivi a época do outro golpe (de 1964), foi como se baixasse uma nuvem negra sobre o Brasil. Espero que após essa eleição o ódio acabe, que façamos as pazes. Lula livre, pelo amor de Deus - discursou Otto, entre aplausos e vaias.
André Ristum venceu como melhor diretor por A Voz do Silêncio e acabou ressaltando, após a premiação, que seu filme fala sobre personagens comuns e invisíveis da sociedade. O cineasta também refletiu sobre as reações do público na cerimônia e como seu longa se conecta ao presente.
- Em um momento que tudo está tão dividido e polarizado. Que ninguém tem nem paciência de ouvir o outro, como vimos no palco, a pessoa fala, e o outro já vaia. Outro xinga. No momento que não se respeita a opinião do outro, que esse filme possa trazer o mínimo de reflexão.
Quem anunciou o vencedor de melhor filme foi o ator Ney Latorraca, homenageado na sexta-feira com o Troféu Cidade de Gramado.
— O melhor filme é La La Land — brincou Ney, fazendo referência ao Oscar 2017, no qual ocorreu a gafe no anúncio do vencedor. — Ao contrário de Hollywood, Gramado funciona. O melhor filme é Ferrugem.
Ao receber o principal prêmio da noite, Aly Muritiba, disse:
— É incrível mostrar esse filme no Brasil e ganhar neste festival, em meio a onda conservadora que estamos passando.
Destaques da premiação
AS VENCEDORAS
Tratando sobre bullying, abuso virtual e culpa, Ferrugem conquistou o kikito de Melhor Filme. No palco, após a premiação, as atrizes Tiffany Dopke (a coprotagonista Tati) e Nathalia Garcia (Daniela) comemoraram.
— É um divisor de águas para a nossa carreira. É um filme muito grande. Amamos o Aly (Muritiba, o diretor) — apontou Nathalia.
— É o nosso primeiro filme! Primeiro trabalho com um longa — celebrou Tiffany. — Daqui para cima, gente, vamos ganhar muito mais prêmios.
Nathalia destacou a importância sobre um dos temas principais de Ferrugem:
— O ciberbullying é uma coisa tão trágica e doída no Brasil, com diversas meninas tirando suas vidas todos os anos, que precisa ser falada. Aly e Jéssica (Candal, roteirista) trouxeram isso de uma maneira humana e cinematográfica para Gramado.
Ferrugem estreia nos cinemas brasileiros no próximo dia 30 de agosto.
PRESENTE E FUTURO DE OSMAR PRADO
Após incendiar a premiação com um discurso político ao receber seu kikito de melhor ator, Osmar Prado adotou um tom mais sereno ao comentar seu futuro. Para ele, o prêmio veio em seu terceiro ciclo da carreira, uma fase que vive aos 71 anos.
— Junto toda a experiência de 60 anos de carreira. Tudo aquilo que consegui botar dentro da cestinha para construir personagens com mais confiança. Quero cada vez mais servir meus personagens com inteligência nas produções que atuo. Minha perspectiva de vida é de 10 ou 15 anos. Eu não sei. Não importa. Já é a visão do limite. É o tempo que vai diminuindo. Vou com coragem, sem medo. Quero enfrentar o desfecho, seja lá qual for, com consciência. Se puder, com muita coragem — contou em entrevista à GaúchaZH.
Osmar vive Kid Jofre em 10 Segundos Para Vencer, o pai e treinador do boxeador Eder Jofre, que foi interpretado por Daniel de Oliveira na cinebiografia.
KIKITOS HERDADOS
As Herdeiras, produção paraguaia dirigida por Marcelo Martinessi que competia na mostra latina, saiu do festival com prêmios em seis categorias: roteiro, atriz (em prêmio compartilhado pelo trio principal do elenco), júri popular, júri da crítica, direção e melhor Filme. O longa apresenta um casal de mulheres de classe alta, Chela (Ana Brun) e Chiqui (Margarita Irún), passando por dificuldades financeiras e precisando vender objetos e móveis antigos que mantinham em casa, valiosa herança de família. Quando a extrovertida Chiqui vai presa por dívidas, a retraída e dependente Chela precisa se virar sozinha, se torna motorista de algumas vizinhas e sente uma atração inesperada por Andy (Ana Ivanova), uma exuberante mulher mais nova. Numa rara sintonia entre público e crítica, o filme caiu no gosto da plateia de Gramado.
— O público nos tratou como rainhas e nos amou intensamente. Vamos levar sempre Gramado no coração — disse, durante a premiação, a atriz Margarita Irun.
PREMIAÇÃO TRIPLA
Desde que o filme As Herdeiras foi exibido, na segunda noite do festival, corria nas conversas em Gramado a quase certeza de que Ana Brun, personagem central do filme, seria a vencedora na categoria atriz em longa estrangeiro. A premiação desta 46ª edição confirmou as apostas da maioria, mas ainda soube reservar surpresas, ao dividir a conquista entre as três atrizes centrais.
— Estamos muito contentes sobretudo porque esse prêmio entende que um trabalho cinematográfico é coletivo, inclusive a construção de um personagem. Este reconhecimento triplo a nós como atrizes é muito importante. Estou muito contente, porque o trabalho cinematográfico é feito de gente visível e invisível na tela — comentou Ana Ivanova, ao receber seu Kikito. Ana Brun não pôde ficar para a cerimônia. O filme estreia no Brasil em 30 de agosto.
BENZINHO DE TODOS
Longa dirigido por Gustavo Pizzi, numa estreita colaboração com sua ex-mulher e protagonista do filme, Karine Telles, Benzinho foi o campeão de prêmios na categoria longa nacional. O filme recebeu quatro kikitos: atriz coadjuvante para Adriana Esteves, atriz para Karine Teles e os prêmios do júri e da crítica. A produção, que narra as aventuras e desventuras de uma dona de casa comum às voltas com questões familiares, problemas financeiros e a iminente partida do filho mais velho para jogar handebol na Alemanha, caiu no gosto da audiência e se tornou um dos filmes mais queridos por público e crítica.
UMA MULHER NADA COMUM
Dando vida à personagem central de Benzinho, Irene, uma mulher comum lidando com desafios cotidianos e financeiros, a atriz Karine Telles se candidatou desde cedo a melhor atriz do festival, algo que a premiação confirmou na noite de domingo.
— Com a Irene, a gente queria falar de uma, personagem absolutamente comum para mostrar o quão grandioso e complexo é o cotidiano de uma mulher que se divide entre cuidar da família e cuidar dela mesma. – comentou Karine, que colaborou com Gustavo Pizzi no roteiro e que já havia sido premiada como melhor atriz em Gramado em 2011 por Riscado.
Benzinho não foi o primeiro nem o único filme exibido em Gramado a tratar de personagens lutando para sobreviver e dar a volta por cima em um cenário de crise econômica e poucas possibilidades de emprego. Essa é a temática total ou parcial também de A Voz do Silêncio, longa que abriu a mostra nacional, e de As Herdeiras, grande vencedor dos latinos. O que tornou Benzinho tão diferente foi a abordagem, com muito mais ternura e humor. Até mesmo com mais amor, como definiu Karine:
— Essa era mesmo a proposta da gente. Acredito que está na hora do mundo mudar de maneira radical. Acho que todos os modelos de revolução já caíram por terra, não é com a violência que vamos mudar o mundo, se isso adiantasse, o mundo já estava resolvido. Então, de certa maneira, a gente, olhando para essa família de classe média baixa, vivendo no interior do Estado do Rio, com uma vida absolutamente banal, a gente propõe isso para o mundo: que a gente busque forças no afeto, na empatia e na escuta para seguir em frente, se transformar e transformar o mundo.
A VEZ DA ANIMAÇÃO
Depois de exibir o seu longa-metragem A Cidade dos Piratas na sexta-feira, última noite da mostra competitiva, Otto Guerra deixou gramado com uma menção honrosa para o longa, que mescla uma adaptação de histórias dos Piratas do Tietê com o processo de transição de gênero de sua criadora, Laerte, e as angústias do próprio Otto para finalizar o longa. Foi um reconhecimento ao papel destacado da animação neste 46º Festival, mas não foi o único.
O Kikito de melhor filme na categoria curtas nacionais ficou com Nara Normande, por sua produção autobiográfica Guaxuma (PE), um filme que mistura várias técnicas de animação para falar de amizade e da descoberta da sexualidade na adolescência de uma jovem no litoral alagoano. O prêmio do júri popular, por sua vez, foi para outro curta animado Torre (SP), de Nadia Mangollini, que também foi premiado pela direção de arte, a cargo de Pedro Franz e Rafael Coutinho, dois grandes artistas de quadrinhos da nova geração.
UM MAESTRO DO SILÊNCIO
André Ristun foi escolhido o melhor diretor por seu trabalho como diretor em A Voz do Silêncio, um filme coral sobre uma dezena de personagens lutando pela sobrevivência no cotidiano hostil de São Paulo, metrópole dura e sem trégua. Ristum comanda um grande elenco, que inclui atores brasileiros, entre eles Marieta Severo, italianos e argentinos.
— Eu trabalhei nesse filme com gente tão talentosa que o meu maior esforço deveria ser sair do caminho e atrapalhar menos possível o trabalho de todos, tentar só dar aqui e ali um polimento naquilo que excedia para um lado ou para outro. O fotógrafo, o montador, diretora de arte, todos com quem trabalho a muitos anos, todo mundo, o elenco incrível. Todo mundo deu tudo para esse filme. A figura de um maestro, que é o cara que coordena os talentos, dá uma ajustada mais para cá, mais para lá, é o que pode descrever o que foi o trabalho neste filme — disse Ristum depois da premiação.