Cineasta baiano radicado no Paraná, Aly Muritiba ganhou notoriedade como diretor com sua Trilogia do Cárcere, três filmes que exploravam um universo que ele conhecia bem, o das cadeias (Muritiba trabalhou anos como agente penitenciário). Agora, ele revisita outra parte de sua experiência, a de professor de ensino médio, para construir um tenso drama sobre bullying virtual em Ferrugem, que estreou nesta terça-feira (21) como parte da mostra competitiva do Festival de Gramado.
Ferrugem é um filme em duas partes. A primeira é centrada em Tati, adolescente do ensino médio que tem, certo dia, um vídeo íntimo que havia feito com o namorado vazado nas redes digitais. Primeiro num grupo de whats da escola, e depois no ambiente mais amplo e selvagem das redes sociais na internet. Vivida pela estreante Tifanny Dooke, ela própria ainda aluna de Ensino Médio, Tati enfrenta a partir do vazamento o escárnio de seus colegas, num crescente de vergonha e humilhação que torna sua vida escolar um inferno. A segunda parte é centrada nas reações ao escândalo de Renet (Giovanni de Lorenzi, visto recentemente em Deus Salve o Rei), um jovem introspectivo com quem Tati recém havia engatado um começo de namoro quando tudo aconteceu.
O elenco conta ainda com Enrique Diaz (Onde Nascem os Fortes), como Davi, professor da escola e pai de Renet, Clarissa Kiste (3%), como a mãe com quem Renet mantém uma relação tumultuada depois que os pais se separaram. Para Muritiba, a grande diferença entre este trabalho e suas incursões pelo mundo prisional é que no último caso ele tinha uma experiência mais ampla sobre o que estava falando, e para Ferrugem ele teve que se valer de muita pesquisa para compreender um universo que lhe é estranho, apesar de seus anos como professor.
— Eu sou pai de um garoto de 15 anos e de uma garota de 10 que estão começando a entrar no mundo virtual, o mais velho já entrou, já criou para si esse avatar de felicidade do mundo virtual, e eu me vi na posição de educar jovens para uma realidade para a qual eu não fui preparado. Eu fui adolescente, vivi as inseguranças da adolescência, que continuam as mesmas, a insegurança de não ser aceito pelo grupo, de ser julgado pelo outro, de ser mal falado, mas vivi isso num mundo analógico, não neste digital, em que as coisas são hiperbolizadas — disse o diretor no debate seguinte à exibição, na manhã de quarta-feira.
Muritiba buscou, entre outras coisas, a ajuda de uma mulher, sua corroteirista Jessica Candal, que deu, com sua perspectiva, mais consistência à perspectiva de Tati nas conseqüências do escândalo.
— Uma questão muito importante para nós no filme era a da alteridade, a de se colocar no lugar do outro. Durante a pesquisa que tivemos, uma fonte importante foi um primo adolescente que me contou vários episódios que ele já havia testemunhado de coisas parecidas que ocorreram com ela. Até então, eu imaginava que mostraríamos uma reação dos amigos muito mais abertamente cruel, e ele me disse: “não é assim, a gente só dá risada”. Isso foi o que mais me surpreendeu no processo. Não era querer fazer mal para o outro, era sequer enxergar o outro, fazer dele culpado, era fazer dele tema para um piada: “Ra-ra, que idiota isso que você fez" — comentou Jessica no debate.
Ferrugem, título mais alegórico do que referencial, refere-se à corrosão interna da vida e da personalidade de Tati após ter sua intimidade exposta. No trajeto, o filme também fala sobre noções de amizade, confiança, responsabilidade, e sobre as motivações e conseqüências do bullying virtual, uma realidade tão presente no universo contemporâneo que os dois atores principais do filme haviam testemunhado situações semelhantes em suas escolas.
— Eu já vi muitos episódios parecidos. Teve um em minha escola que me marcou muito, que foi o de uma menina mandou um foto íntima para um menino e ele não conseguiu guardar para si porque enfim, ele tinha que se mostrar, e essa foto foi para o colégio todo. Todo mundo vendo o que era mais íntimo naquele momento para aquela menina, seu corpo. Para se pronunciar, o colégio fez uma discussão com os alunos. E todo mundo que falava dela, que a chamava dos nomes mais horríveis, que tinha a foto no celular, começou a defender a menina no encontro. Todos dizendo que era errado, mas ninguém parecia se tocar que aquilo estava acontecendo com uma menina de verdade daquela escola — disse a intérprete de Tati, Tifanny Dooke
O filme, que fez sua estreia mundial no festival americano de cinema independente Sundance, tem previsão de chegar ao circuito comercial brasileiro no dia 30 de agosto.