O Festival de Cinema de Gramado apresentou nesta 46ª edição uma das seleções mais bem equilibradas dos últimos anos. A maioria dos filmes da competição nacional e da mostra latina deu sinais de grande maturidade técnica, e alguns temas comuns se sobressaíram ao longo dos nove dias do evento, como os olhares diversos, às vezes duros, às vezes otimistas, sobre vidas brasileiras lutando para sobreviver a períodos de crise. Houve espaço para cinebiografias, para o realismo fantástico e uma programação em reconhecimento à técnica de animação.
Neste fim de semana em que Gramado se despede de mais uma celebração ao cinema latino-americano, segue um balanço do que se destacou no festival. O Canal Brasil transmite a entrega dos Kikitos no sábado, a partir das 20h45min.
Karine muito bem
Uma das atuações mais elogiadas pela crítica no Festival de Gramado foi a de Karine Teles, protagonista de Benzinho. Além de escrever o roteiro do filme com o diretor Gustavo Pizzi, ela vive Irene, mulher que se desdobra para dar conta de problemas familiares que a levam à exaustão emocional. Karine domina cada cena com uma interpretação impecável. Cada expressão no rosto da atriz é capaz de transmitir muitas emoções e informações. Ela constrói com Irene um mosaico de mães e mulheres batalhadoras, criando uma personagem de fácil identificação com a plateia feminina.
Os filmes das vidas
Gramado 2018 destacou filmes sobre personagens reais. Dos nove da mostra de longas nacionais, dois foram cinebiografias strictu sensu: Simonal, de Leonardo Domingues, sobre o cantor caído em desgraça como suposto informante da ditadura, e 10 Segundos para Vencer, de José Alvarenga Jr., com Daniel Oliveira vivendo o boxeador Éder Jofre. Tanto Fabrício Boliveira, como Simonal, quanto Daniel de Oliveira, no papel de Jofre, ofereceram performances vibrantes. E Osmar Prado, como o pai de Éder, Kid Jofre, despontou como favorito ao Kikito de ator coadjuvante.
Além disso, a animação A Cidade dos Piratas, de Otto Guerra, também apresenta elementos da biografia da cartunista Laerte e sua transição de gênero. Na mostra gaúcha, Yoñlu, de Hique Montanari, fez uma reconstituição poética da vida do jovem músico gaúcho que transmitiu sua própria morte pela internet.
Carlos, Edson, Natalia & Ney
O primeiro homenageado da 46ª edição do festival foi o animador brasileiro Carlos Saldanha (A Era do Gelo e O Touro Ferdinando), que recebeu o Troféu Eduardo Abelin no sábado passado. Na segunda, foi a vez do ator Edson Celulari celebrar 40 anos de carreira e seis décadas de vida com o Troféu Oscarito.
A atriz e cantora uruguaia Natalia Oreiro, que fez carreira na Argentina e é sensação na Rússia, recebeu o Kikito de Cristal na última quarta. Já o ator Ney Latorraca seria homenageado na noite de sexta com o troféu Cidade de Gramado.
A força dos latinos
A mostra latina apresentou uma boa diversidade de países produtores e temáticas. Do surrealismo folclórico do boliviano Averno ao clima de Sessão da Tarde do uruguaio Mi Mundial. Entre os elencos, o grande destaque feminino foi a atuação da atriz paraguaia Ana Brun no filme As Herdeiras, de Marcelo Martinessi.
Com uma interpretação poderosa, premiada no Festival de Berlim, Brun vive uma mulher de família abastada em crise financeira e que tem de reaprender a cuidar de si mesma após sua companheira ser condenada à prisão. A simpática produção Mi Mundial cativou o público com uma história de queda e redenção no mundo da bola, na figura de um menino que começa a fazer sucesso em equipes de aspirantes. Entre as interpretações masculinas, sobraram elogios ao ator uruguaio Néstor Guzzini como o pai do garoto.
O festival da animação
Esta 46ª edição do Festival lançou um olhar atento para a arte da animação. Tanto na lista de homenageados, que incluía a presença do diretor de renome internacional Carlos Saldanha, quanto na programação. Saldanha ressaltou a satisfação de ser reconhecido no Brasil por uma carreira feita quase toda no estrangeiro. Além disso, um longa animado concorria na mostra competitiva, A Cidade dos Piratas, de Otto Guerra. Entre os curtas, havia o conto ecológico Plantae, de Guilherme Gehr, e o drama memorialístico Guaxuma, de Nara Normande. O Festival também contou com debates sobre o tema e o lançamento do livro Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais, produzido pela Abraccine, com um apanhado das principais obras do gênero no país.
O circo e a fantasia
Reservadas à exibição dos filmes que concorriam a prêmios, as noites do Festival também tiveram duas exibições especiais de filmes fora de competição. Cacá Diegues trouxe à cidade seu O Grande Circo Místico, produção que levou anos sendo realizada e que narra, em tons barrocos de realismo mágico, as tribulações de cinco gerações de uma família proprietária de um circo. Na sétima noite do festival, o cancelamento do longa O Banquete levou à reexibição, na programação noturna, do filme infantil A Chave do Vale Encantado, dirigido pelo cantor Oswaldo Montenegro.
Palco social
Cenário de muitos períodos de resistência ao longo de seus 46 anos, Gramado também sintonizou na seleção deste ano uma forte tendência à denúncia pelo cinema de questões sociais candentes do Brasil. A Voz do Silêncio, primeiro filme em competição, mostrou um mosaico de vidas enfrentando crises pessoais amplificadas pela crise geral do país. Mormaço, de Marina Meliande, flagrou as desocupações forçadas de comunidades do Rio na preparação para as Olimpíadas. A luta cotidiana para se virar diante das dificuldades é tratada de modo mais leve em Benzinho, mas se faz presente
Curtas gaúchos
Dirigido por Thais Fernandes, Um Corpo Feminino foi consagrado como melhor curta da mostra gaúcha do festival. A produção, que ainda obteve o prêmio de melhor roteiro, propõe uma reflexão para mulheres de diferentes gerações. Já Sem Abrigo, de Leonardo Remor, foi o curta que venceu em mais categorias: montagem, fotografia, melhor atriz e o prêmio da crítica.
Festa sem banquete
A sessão de O Banquete, que seria realizada na quarta-feira dentro da mostra competitiva, foi suspensa pela diretora Daniela Thomas em virtude da morte do diretor de redação do jornal Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho, no dia anterior. Conforme Daniela, a atitude respeitou o luto da família, uma vez que o filme se inspira em eventos que retratam o período de tensão entre os jornalistas e o então presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello, que deixou o poder em um processo de impeachment — Daniela faz uso na trama de uma carta aberta de Otavio a Collor, publicada em 25 de abril de 1991.