Aconteceu tanta coisa ao longo da produção de Cidade dos Piratas, filme que adaptou da obra da cartunista Laerte, que o animador Otto Guerra comemora sua finalização como uma grande vitória. O longa-metragem será apresentado na competição nacional do 46º Festival de Cinema de Gramado, que tem início nesta sexta-feira (17).
Para começar, Laerte passou por várias transformações, tanto na sua obra, que acabou por abandonar o humor calcado em personagens fixos, quanto na sua vida, na qual viveu um processo público de transição de gênero. Da ideia do projeto à exibição no Palácio dos Festivais, dia 24 de agosto, passaram-se mais de 20 anos. Laerte criou os Piratas do Tietê em 1983, para a revista Chiclete com Banana — no fim da mesma década, os personagens passaram a ser publicados em tirinhas de jornal.
— A primeira versão finalizada do roteiro ficou pronta em 2001, mas mudou completamente. Houve um momento em que a Laerte nem queria mais fazer o filme. Repetia que, para ela, os piratas eram “múmias machistas” — diz Otto.
Enquanto desenvolvia A Cidade dos Piratas, o diretor se dedicou a outros projetos – entre eles a adaptação de Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n Roll (2006), a partir do trabalho do cartunista Angeli, amigo de Laerte, e Até que a Sbórnia nos Separe (2013), inspirado no universo do espetáculo musical Tangos & Tragédias. Ao longo desse período, o roteiro de A Cidade dos Piratas passou por mais de 10 versões assinadas por diferentes profissionais, sem que a produção tomasse forma.
Em adição a isso, em 2013 Otto foi diagnosticado com um câncer de cólon em estágio avançado, o que o levou a encarar a produção com um olhar mais radical, fazendo do filme uma mescla de várias meadas: é tanto uma adaptação de alguns personagens de Laerte quanto uma reflexão sobre o processo que a artista passou para redefinir a sua sexualidade — com espaço para um comentário sobre a nova ascensão do conservadorismo e a inclusão do próprio Otto como personagem, espelhando no filme as dificuldades que a produção encontrou para sair do chão.
— Aconteceram muitas reviravoltas na vida da Laerte. Acho que o trabalho anterior era ótimo, mas depois ela, como artista, transcendeu o meio da tira de quadrinhos. Eu queria trazer para o filme todas essas mudanças, a questão dela transgênero, a pegada mais abstrata, até minhas dificuldades com o filme, tudo do meu jeito anárquico.
Diretor define o filme como seu melhor legado
O roteiro final é assinado por Rodrigo John, que também trabalhou em Wood & Stock e Até que a Sbórnia nos Separe. Parceira de longa data de Otto, a produtora Marta Machado declarou-se exaurida pela experiência e rompeu a relação profissional com o diretor, algo também retratado no filme (ainda amiga de Otto, ela topou dublar seu próprio personagem) — entre as outras vozes do longa estão Marco Ricca, Matheus Nachtergaele e Paulo Tiefenthaler.
Apesar da produção acidentada, este é o longa com o qual Otto se diz mais satisfeito:
— Quando vi o ...Sbórnia, achei tecnicamente muito bom, mas fiquei decepcionado, esperava mais. O Wood & Stock é uma boa ideia que não rendia um longa. Quando vi este filme, me senti, pela primeira vez, realizado. Posso morrer feliz. Mas só para constar: estou bem de saúde agora.