Mormaço, filme exibido na noite de domingo como parte da Mostra Competitiva do 46º Festival de Cinema em Gramado, consegue um feito peculiar. É uma produção que está alinhada, ainda que inadvertidamente, com duas grandes tendências recentes do cinema nacional: a denúncia política da especulação imobiliária, temática de Aquarius e Era o Hotel Cambridge, e a recente explosão do cinema de horror nacional, do qual fazem parte As Boas Maneiras e O Animal Cordial. Mas, ao mesmo tempo, o filme, bem recebido pela plateia em Gramado, é uma produção com feição própria que consegue casar o documental e o fantástico ao abordar as transformações urbanísticas impostas ao Rio de Janeiro durante a preparação para a Copa do Mundo e as Olimpíadas.
O filme é dirigido por Marina Meliande, de obras anteriores de forte pegada experimental, como A Fuga, a Raiva, a Dança, a Bunda, a Boca, a Calma, a Vida da Mulher Gorila (2009) e A Alegria (2010). Em Mormaço, ela flagra alguns dias na vida da defensora pública Ana (Marina Provenzzano, em seu segundo filme exibido neste festival, já que também está no elenco de O Grande Circo Místico, de Cacá Diegues) que atua em defesa da associação de moradores da Vila Autódromo, uma das comunidades pressionadas e ameaçadas de remoção pelas obras para a construção do Parque Olímpico do Rio. Enquanto tenta impedir que o grupo de moradores liderados por Domingas (papel de Sandra Maria, moradora e líder comunitária da Vila Autódromo real) perca seu espaço de moradia, ela tem de lidar ela própria com outra forma de desalojamento, já que o edifício em que mora, um prédio elegante e antigo no Centro do Rio, está sendo adquirido apartamento por apartamento por uma empreiteira disposta a demoli-la para erguer um novo condomínio.
Enquanto transita entre seu prédio quase deserto e a Vila Autódromo em estado de alerta pela truculência da polícia e pela pressão das máquinas dispostas a demolir todas as casas possíveis antes da próxima liminar obtida por Ana, a defensora vai desenvolvendo uma misteriosa doença de pele que evolui para um quadro final em que o tom documental e político do filme até ali vai sendo substituído por uma atmosfera urgente de cinema de horror.
— A ideia do filme começou há alguns anos, o roteiro começou a ser escrito em 2012 quando a gente viu que a cidade do Rio de Janeiro ia sediar dois grandes eventos, a Copa e as Olimpíadas, e isso provocou mudanças muito grandes e muito rápidas na cidade, mudanças urbanísticas e sociais muito fortes. Então eu queria mostrar essa protagonista que se sentia incomodada com aquela situação e que de alguma forma o corpo dela começava a reagir antes mesmo de ela perceber o quão incomodada ela está — disse a diretora no debate sobre o filme, na manhã de ontem.
Marina Meliande contou, para fazer o filme, com a colaboração dos moradores da Vila Autódromo real, a única que conseguiu preservar parte de suas casas no processo acelerado de remoção levado à cabo pela prefeitura do Rio durante as obras da Olimpíada. Uma das atrizes do filme, Sandra Maria, era uma das lideranças comunitárias do lugar, ex-atriz de teatro.
— A Marina chegou lá num momento em que estávamos vivendo aquela remoção, resistindo a um processo absurdo de planejamento da cidade. A gente sabe que para a preparação para os megaeventos de 2014 e 2016 no Rio foram removidas 68 mil pessoas e a imprensa não fala disso, são dados que não são discutidos, e essas pessoas foram removidas com a única intenção de favorecer os setores da especulação imobiliária na cidade, porque não eram necessárias..
O filme inclui ainda impactantes imagens da destruição de casas pelas escavadeiras da prefeitura.
— Antes mesmo de termos o elenco, fomos em uma equipe super reduzida, às vezes apenas eu e o fotógrafo, e fizemos muito material documental – contou Marina.
A estrela do filme é a jovem atriz Marina Provenzzano, também vista na noite de abertura no filme O Grande Circo Místico, de Cacá Diegues. Com uma atuação mais concentrada em teatro, a atriz tem até agora um currículo breve no cinema – incluindo aí A Frente Fria que a Chuva Traz, de Neville de Almeida. Sua surpreendente caracterização de dois personagens bastante diversos — a batalhadora mas cansada Ana de Mormaço e a oprimida Charlotte de O Grande Circo, contudo, mostram que ela é um nome em que se prestar atenção no futuro.