Tem alguma coisa na água de Taiwan. Um ano depois de o Fantaspoa apresentar Get the Hell Out, outro filme do subgênero apocalipse zumbi produzido no país asiático — A Tristeza (Ku Bei, 2021) — integra a programação do 18º Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre. As próximas sessões serão nesta quarta-feira (20), às 14h30min, no Cine Grand Café, e no dia 27, às 18h30min, na mesma sala.
Convém se preparar psicologicamente. Se em Get the Hell Out o diretor I-Fang Wang ofereceu uma delícia hipercalórica na qual mesclava a ação exagerada e a comédia política, em A Tristeza — como o título sugere — o realizador canadense radicado em Taiwan Robert Jabbaz apresenta um cardápio bem pesado. Não há açúcar, embora haja afeto.
É o que une o par central, o jovem casal Jim (interpretado por Berant Zhu) e Kat (vivida por Regina Lei). Eles acordam para mais um dia em Taipé, capital do país onde ninguém está levando muito a sério uma pandemia — que surgiu "justo em ano eleitoral", ouve-se em um comentário na TV. Assim que Jim deixa Kat na estação do metrô, o terror toma conta da cidade (dá para tirar uma amostra pelas fotos na galeria abaixo).
A explosão de violência e de sangue inclui membros decapitados por tesouras de jardinagem, olhos perfurados com um cabo de guarda-chuva, torturas com arame farpado, mordidas que dilaceram a vítima, estupros coletivos, atos de necrofilia... Tudo é acompanhado pelo ponto de vista sempre aflito de Jim e Kat, um à procura do outro em meio ao caos, pela música tensa composta por Tzechar e pela epidérmica direção de fotografia do estreante Jie-Lie Bai.
Jabbaz também é um estreante em longas, após assinar curtas de animação. Para escrever o roteiro de A Tristeza, ele se inspirou na história em quadrinhos Crossed, publicada entre 2008 e 2010 pelo roteirista Garth Ennis (o mesmo do seriado The Boys) e pelo desenhista Jacen Burrows. Como na HQ, os protagonistas do filme são gente como a gente, propensos ao erro e ao medo; Deus não existe, ou no mínimo é um piadista sacana; e as autoridades vivem nos ferrando — estamos sozinhos contra o mundo.
Também como na HQ, os monstros do filme não são exatamente zumbis, não estão mortos-vivos. São, nas palavras do diretor, "as piores versões de nós mesmos": indivíduos conscientemente movidos apenas pelo ódio, pelo prazer próprio, pelo sadismo latente que ajuda a explicar o sucesso de séries como a sul-coreana Round 6 e programas como o Big Brother Brasil, com seu vocabulário autoexplicativo: paredão, teste de resistência, jogo da discórdia.
Assim, A Tristeza configura-se muito menos como uma alegoria violenta da pandemia do que uma distopia psicopolítica: o que seria de uma sociedade polarizada se a gente só atendesse aos impulsos do id? Que civilização seria possível se não houvesse as instâncias mediadoras e repressoras do ego e do superego? E em que velocidade todas as construções sociais podem ruir, fazendo desaguar um contagiante e interminável banho de sangue?