Tanto no Google quanto no site IMDb, o filme italiano Tre Piani (2021), que estreou na quinta-feira ( 7) em dois cinemas de Porto Alegre — Cine Grand Café e Espaço Bourbon Country —, aparece definido como drama/comédia. O emprego deste segundo gênero não se justifica em nenhum instante das quase duas horas de duração. Deve ser por conta de um ato reflexo, uma reação involuntária ao nome do diretor: Nanni Moretti.
A carreira do cineasta de 68 anos é cheia de títulos cômicos ou que no mínimo flertam com o humor, como Palombella Rossa (1989), Caro Diário (1993), que lhe valeu o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, Aprile (1998), O Crocodilo (2006), Habemus Papam (2011) e Mia Madre (2015). Mas Tre Piani não tem nada de engraçado. Na filmografia de Moretti, talvez alinhe-se apenas a O Quarto do Filho (2001). Com uma diferença brutal: se aquele filme sobre o luto de uma família, ganhador da Palma de Ouro em Cannes, era pungente sem resvalar para o sentimentalismo, o novo, igualmente lançado na mostra francesa, carece de emoção mesmo apostando em elementos do melodrama.
Tre Piani tem uma outra diferença marcante em relação às obras anteriores de Moretti. Como de hábito, o diretor também trabalha como ator, mas desta vez o roteiro abre mão de qualquer tipo de toque autobiográfico. Na verdade, pela primeira vez o cineasta italiano não parte de uma ideia original sua. Baseia-se em um romance do escritor israelense Eshkol Nevo ambientado em Tel-Aviv (Three Floors Up, no título em inglês).
Moretti levou a história para Roma, onde três famílias moram em um edifício de três andares. O prédio e os personagens aludem à teoria da personalidade elaborada por Sigmund Freud (1856-1939), que sistematizou a psique humana em id, ego e superego.
Grosso modo, o id é movido pelo princípio do prazer, é nossa parcela mais instintiva, que privilegia desejos e impulsos. O superego é seu oposto, impondo limites, regras, condutas a partir das leis e dos valores da sociedade — é movido pelo princípio do dever. No meio do caminho, fica o ego, um mediador entre as nossas vontades e as condições externas — está guiado pelo princípio da realidade.
Assim, no andar de baixo — o inconsciente — vive um pai, Lucio (Riccardo Scamarcio, de John Wick: Um Novo Dia para Matar e Os Tradutores), desconfiado de que a filha pequena sofreu abuso de um vizinho idoso, avô da adolescente Charlotte (Denise Tantucci), que vai tentar seduzi-lo.
No andar do meio — o pré-consciente —, Monica (Alba Rohrwacher, vencedora da Copa Volpi no Festival de Veneza por Hungry Hearts), acaba de ser mãe e precisa lidar com a solidão provocada pela ausência do marido, em trabalho, e com alucinações que podem ser consequência de uma doença hereditária.
O andar de cima é habitado justamente por um juiz, Vittorio Bardi, personagem não por acaso encarnado por Moretti — por ocupar também a cadeira de diretor, ele precisa ser o ator mais consciente no set.
A primeira cena de Tre Piani conecta as três famílias. Dirigindo em alta velocidade, Andrea (Alessandro Sperduti), o problemático filho de Vittorio e Dora (Margherita Buy, atriz de O Crocodilo, Habemus Papam e Mia Madre), atropela uma mulher. O acidente é testemunhado por Monica, à espera de um Uber para ir dar à luz no hospital. E o carro, desgovernado, invade a residência de Lucio.
Não fosse a morte da mulher atropelada, Tre Piani até poderia desaguar em uma comédia dramática. Mas o que vem a seguir inclui outra morte, depressão pós-parto, adultério, acusação de estupro, tentativa de homicídio, agressão física a um pai, o sumiço de uma mãe, briga de irmãos, uma falcatrua ligada à máfia...
Não há alívio cômico, mas tampouco Nanni Moretti pesa a mão no dramalhão. Pelo contrário: investido de teor psicanalítico, o filme parece desidratado — e a fria fotografia de Michele D'Attanasio contribui para o amortecimento emocional do espectador. É um melodrama cerebral (o que alguns podem ver como copo cheio). Daí que, após dois pulos de "cinco anos depois", o tom conciliador do terço final mostra-se apressado e artificial, ainda que absolutamente esperado e convencional. (Esse terço final inclui uma referência gratuita à xenofobia — é como se fosse Nanni Moretti apenas batendo o ponto no comentário político.)
E se, por um lado, há um bom equilíbrio na divisão de tempo entre as três tramas, por outro elas acabam correndo muito separadamente, sem tanto da conectividade sugerida na abertura. Aliás, Moretti explora pouco, do ponto de vista cenográfico, o edifício que liga os personagens.
O que fica é o retrato de relações familiares fraturadas pela frustração das expectativas, pela hipocrisia, pela repressão, pela traição, pelo medo, pelo ressentimento. É um universo em que os homens estão presos nas suas obstinações ou concentrados demais nas suas próprias vidas, enquanto as mulheres precisam segurar a barra às vezes sozinhas e tentar reatar os laços entre maridos e esposas e entre pais e filhos.