O diálogo em A Vida Invisível (2019), filme em cartaz nas plataformas Globoplay, Telecine, Apple TV, Google Play e YouTube, parece corriqueiro, conversa de corredor entre duas vizinhas de um cortiço no Rio de Janeiro, e a cena não dura mais tempo do que as personagens precisam para dizer suas falas. Mas aquelas duas palavrinhas pesam profundamente, ficam reverberando na cabeça do espectador.
Recém-chegada do hospital, onde dera à luz, uma mulher é questionada por outra, que quer saber se o bebê é menino ou menina. Diante da resposta, quem perguntou comenta:
— Sorte a dele.
Sorte. Dele. Por consequência, azar o delas. Nessa brevíssima passagem de A Vida Invisível, o diretor cearense Karim Aïnouz sintetiza a história que conta e o seu contexto social, a ficção e a realidade. Nascer mulher é correr riscos.
Seja no Brasil dos anos 1950, época em que se passa a maior parte do filme, seja no país de hoje, onde, durante a pandemia, foi registrado aumento no número de casos de feminicídio; onde, em 2020, cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual, segundo pesquisa do Instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública; onde um recente estudo do IBGE revelou que as trabalhadoras ganham, em média, 20,5% a menos do que os homens; onde elas, apesar de serem a maioria na população (51,1%), estão sub-representadas na política — apenas 10,5% do Congresso é feminino, apenas 11,8% das prefeituras são femininas.
As brasileiras são agredidas, são desrespeitadas, são silenciadas. Mais de 60 anos atrás, as protagonistas de A Vida Invisível já enfrentavam os mesmos problemas. Interpretada por Carol Duarte (que fez o transexual Ivana/Ivan na novela A Força do Querer e que encarnou a Solange do seriado Segunda Chamada), a jovem Eurídice é uma pianista talentosa e reprimida. Suas aventuras sexuais são as da irmã, Guida (papel de Júlia Stockler), que lhe conta sobre os avanços íntimos de um marinheiro grego. Uma protege a outra, e só se separam quando Eurídice, tocando seu piano, acoberta as escapadas noturnas de Guida. Até que um dia a separação se agiganta. Antes cúmplices, as irmãs tornam-se invisíveis uma para a outra.
Sozinhas, cada uma em seu canto, Eurídice e Guida terão de lidar com temas e situações que continuam atuais. Uma sociedade patriarcal, o machismo, a intolerância para com um comportamento libertário, a anulação ou a desconsideração pelas vontades e pelos sonhos femininos, a opressão cotidiana. Do lado de cá da tela, nutrimos a esperança por um reencontro, nos esfacelamos nos desencontros, reconhecemos dramas e desafios de nossas avós, mães, irmãs — tomara que não das nossas filhas.
Usar o passado para refletir o presente é um dos trunfos desta adaptação do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, escrito pela pernambucana Martha Batalha. Entre outros tantos, que incluem a química entre as atrizes Carol Duarte e Júlia Stockler (construída graças a um imersivo e isolante trabalho de preparação), a belíssima fotografia da francesa Hélène Louvart (a mesma de um filme aparentado, Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre, da diretora estadunidense Eliza Hittman) e a poderosa trilha sonora do alemão Benedikt Schiefer, está a opção do diretor Karim Aïnouz por uma estrutura dramática mais clássica. Ele fez "um melodrama tropical", expressão empregada inclusive nos créditos de abertura, por acreditar, como disse em entrevista ao meu colega Daniel Feix, que "os filmes de gênero têm o poder de ser consistentes e promover reflexões a partir das sensações, e não de eventuais invenções da linguagem" e que "é possível manter a assinatura do autor dialogando com um público mais amplo".
Essa escolha feita pelo cineasta de Madame Satã (2002), O Céu de Suely (2006) e Praia do Futuro (2014) deu resultado. A Vida Invisível venceu a mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes, superou o fenômeno Bacurau na disputa para representar o Brasil na briga pelo Oscar de melhor filme internacional (mas acabou eliminado antes da lista de semifinalistas), concorreu ao Independent Spirit Awards na mesma categoria e, no total, faturou quase 40 troféus em mostras como as de Denver (nos Estados Unidos), Havana (Cuba) e Valladollid (Espanha).
Karim Aïnouz lança nos minutos finais de A Vida Invisível uma carta decisiva para arrebatar corações e o mundo: a participação especial de Fernanda Montenegro, um nome internacional desde que, pela Dora que interpretou em Central do Brasil (1998), recebeu o Urso de Prata no Festival de Berlim e concorreu ao Oscar de melhor atriz (a propósito, uma coincidência aproxima os dois papéis). Mas de nada adiantaria seu prestígio se Fernanda não demonstrasse seu talento. E, para isso, ela mal precisa das palavras — vide seu silêncio carregado de emoção em uma cena epifânica, capaz de fazer uma sala de cinema inteira desabar no choro, como eu presenciei em 2019. Sorte a nossa.