Alguns atores têm um tipo singular de magnetismo: podem, simultaneamente, atrair (por conta da intensidade na interpretação) e repelir (por causa de características do personagem). Lançado recentemente pela Netflix, O Desconhecido (The Stranger, 2022) é um filme policial que reúne dois artistas assim: o inglês Sean Harris, 56 anos, e o australiano Joel Edgerton, 48.
Nenhum deles traz no currículo muitos prêmios importantes — Harris já ganhou um Bafta pela minissérie Southcliffe (2013), Edgerton concorreu ao Globo de Ouro por Loving (2016). Talvez jamais tenham sido especulados para o Oscar. Mas ambos conquistaram algo maior, pelo menos no meu critério de avaliação: cravaram um lugar na memória do espectador, impactado mesmo quando o papel desempenhado nem é o principal.
Como esquecer, por exemplo, do Ian Curtis (1956-1980) vivido por Harris em A Festa Nunca Termina (24 Hour Party People, 2002)? Nesse filme sobre a cena musical de Manchester, o ator empresta ainda mais tristeza e morbidez ao vocalista do Joy Division que tirou a própria vida quando a banda estava em ascensão.
Ou então de Solomon Lane, o maquiavélico vilão de dois títulos da franquia Missão: Impossível — Nação Secreta (2015) e Efeito Fallout (2018). Há ainda o Macduff de Macbeth: Ambição e Guerra (2015). E, provando versatilidade, o terno chef de cozinha de Spencer (2021), uma das raras companhias com as quais a princesa Diana se sente à vontade.
Edgerton, apesar de ser quase 10 anos mais jovem do que Harris, é bem mais famoso. Afinal, já apareceu até na saga Star Wars, como o Owen Lars de Ataque dos Clones (2002) e A Vingança dos Sith (2005) e da minissérie Obi-Wan Kenobi (2022), estrelou títulos indicados ao Oscar de melhor filme (A Hora Mais Escura, de 2012) e superproduções — algumas de gosto muito duvidoso, vale frisar (O Grande Gatsby, de 2013, Êxodo: Deuses e Reis, de 2014). Também merecem destaque Reino Animal (2010), Guerreiro (2011), O Presente (2015), que ele mesmo dirigiu, e O Rei (2019), além da minissérie The Underground Railroad (2020).
Escrito e dirigido pelo australiano Thomas M. Wright, O Desconhecido estreou na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes. É baseado em uma história real ocorrida em seu país — mas como a maioria dos brasileiros não deve estar familiarizada com o caso, aqui não se falará muito sobre a trama. Ou melhor: não se falará quase nada, pois quanto menos soubermos, melhor.
Não é que o filme seja uma montanha-russa repleta de reviravoltas. Antes pelo contrário: O Desconhecido é como um quebra-cabeças do qual a gente consegue intuir qual vai ser o quadro final, mas que é montado pacienciosamente pelo diretor. Pacienciosa e engenhosamente: Wright embaralha um pouco a cronologia dos fatos, mistura imagem e som de maneira não muito convencional, corta de um personagem para outro sem avisar.
A ideia é construir um suspense atmosférico e hipnotizante.
Não à toa, o filme começa mostrando o topo de uma montanha e uma floresta densa, cenas que se fazem acompanhar pela seguinte narração em off: "Feche os olhos e concentre-se na sua respiração. Inspire e expire. Concentre-se no ar entrando no corpo quando inspirar. Ele é limpo. Quando expirar, o ar que sai de você é sujo. A sujeira é ansiedade e estresse, as suas preocupações. Ao expirar, sinta-a saindo do corpo. Inspire ar limpo e expire ar sujo".
Não à toa, o cartaz do filme mescla os rostos de Sean Harris e Joel Edgerton — ambos caracterizados com barba e cabelos compridos, geralmente presos em um coque. É como se ambos fossem o mesmo personagem, embora cada um guarde segredos em relação ao outro.
E, de fato, logo as vidas dos dois vão se cruzar: após uma longa viagem de ônibus, Henry (Harris) conhece Mark (Edgerton), que oferece trabalho em uma organização criminosa. Logo um vai ter de respirar o ar do outro.