Quando surge um fenômeno no cinema de gênero, logo aparecem as manchetes classificando o autor como "o novo Spielberg". Aconteceu com M. Night Shyamalan, após O Sexto Sentido (1999), Corpo Fechado (2000) e Sinais (2002). Mais recentemente, tal comparação caiu sobre Jordan Peele, que fez a sua estreia com o surpreendente e oscarizado Corra! (2017). Na sequência, ainda entregou o ótimo Nós (2019).
Mas o fato é: nenhum deles é "o novo Spielberg". Shyamalan, entre acertos e (vários) erros, cravou no mundo do cinema que é, na verdade, o primeiro e único Shyamalan. Tem seu estilo próprio, suas histórias, sua assinatura. E Peele, que está chegando agora neste espaço — em alto nível, vale destacar — também não precisa de nenhuma comparação: Peele é Peele. E o seu nome não precisa estar sob a sombra de nenhum outro.
O seu mais recente filme, Não! Não Olhe!, que chega nesta quinta-feira (25) aos cinemas nacionais — com mais de um mês de atraso em relação à sua estreia nos Estados Unidos — traz, entre várias mensagens distribuídas em muitas camadas, justamente a questão do apagamento histórico dos negros em Hollywood. E tudo isso misturando western com ficção científica, dois gêneros de grande sucesso neste mercado.
A produção já começa mostrando a primeira imagem em movimento, criada pelo fotógrafo Eadweard Muybridge, em 1879, que trazia um jóquei negro sobre um cavalo. O momento é considerado um dos primórdios do cinema, com o nome do seu criador e até mesmo do cavalo, Occident, sendo amplamente documentados e difundidos pela história. O do homem que montava o animal, porém, não se tem conhecimento — apenas algumas especulações.
Em Não! Não Olhe!, Peele decide reescrever a história, dar um nome para o jóquei, Alistair E. Haywood, e, além disso, uma família — a única formada por negros que fornece cavalos para Hollywood. O negócio, porém, começa a ter problemas após o patriarca, Otis (Keith David), ser atingido por um objeto que cai misteriosamente do céu e a fazenda passar a ser administrada pelos irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer).
Em paralelo aos problemas financeiros, uma ameaça desconhecida paira sobre o local — e, talvez, tenha sido ela a responsável pelo acidente com Otis. E é aí que Peele abocanha a audiência: ele consegue fazer o famoso cinemão, entregando a velha luta hollywoodiana entre humanos contra alienígenas, mas, para quem quiser olhar mais de perto, enxergará as mensagens nas entrelinhas.
De perto
Vizinho da fazenda dos Haywood, Ricky "Jupe" Park (Steven Yeun) montou um parque de diversões baseado no sucesso do personagem que interpretou na infância — o garoto asiático que fazia graça em séries norte-americanas. Porém, após uma experiência traumática, ele deixou a indústria. E é justamente sobre as duas propriedades, a dos negros e a do asiático, minorias em Hollywood, que a nave alienígena decide se instalar, entre as nuvens, abduzindo seres vivos e provocando quedas de energia por onde passa.
Mas como provar que existe vida lá fora? Como mostrar isso para o mundo sem qualquer dúvida, uma vez que todas as imagens de óvnis são sempre questionáveis? Pelo cinema, claro. E é aí que entram dois personagens que tentarão ajudar os irmãos a capturar a evidência definitiva da existência de vida alienígena: Angel Torres (Brandon Perea) — o cara dos eletrônicos — e Antlers Holst (Michael Wincott) — o cineasta excêntrico que, inclusive, cria uma câmera Imax à manivela. Juntos, os quatro formam um time que, cada um com as suas ambições, quer ter sucesso na captura da imagem.
E é com essa imagem, com essa prova grandiosa, que os Haywood esperam atingir fama e, principalmente, o seu lugar de destaque na indústria de Hollywood porque, afinal, eles são descendentes de alguém que deveria ser considerado uma das principais peças da fundação do cinema. Inclusive, eles dizem durante o filme que, com tal evidência, será impossível apagarem eles da história. Uma reflexão sobre como os negros precisam do extraordinário, de muito mais esforço, para conseguirem espaço.
Peele prioriza tanto a imagem e quer mostrar para o espectador cada uma como se fosse uma prova irrefutável de seu cinema, que tem todo um trabalho ao lado do diretor de fotografia Hoyte Van Hoytema, de fazer cenas noturnas que não escondem nada — ao contrário da realidade dos blockbusters de Hollywood. Ele evidencia cada expressão de seus atores, cada pequeno movimento da nave que se espreita nos céus. Não deixa nenhuma margem para dúvidas.
Peele, que além de dirigir, ainda é produtor e roteirista de Não! Não Olhe!, não tem pressa para desenrolar a sua trama e, por sinal, busca lá no cinema de Spielberg — com Tubarão (1975) e Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) — e de Shyamalan — com Sinais — a forma de levar o medo e a tensão pelo desconhecido ao público, mas com uma interpretação totalmente sua.
O cineasta navega pelos céus, tentando encontrar o inimigo, tal qual o chefe de polícia da ilha fictícia de Amity, Martin Brody (Roy Scheider), fazia no mar, ao tentar encontrar o predador marítimo naquele que é o pai dos blockbusters. Mesmo com a ameaça nas alturas, Peele traça um paralelo interessante — mas que pode estragar a experiência caso seja revelado aqui — sobre a questão de olhar nos olhos das criaturas, sejam terrenas ou espaciais. E, claro, ainda é possível ver ali uma crítica bem ácida ao mercado hollywoodiano e como ele engole quem tenta lhe encarar, uma fera incontrolável.
Tudo isso em um cenário de western, gênero que se funde com a história de Hollywood, mas que teve muito pouco espaço para os negros — mesmo que os primeiros caubóis americanos fossem, justamente, negros. As sequências de Kaluuya — que mais uma vez brilha em cena — cavalgando, em cenas que remetem ao seu antepassado são de arrepiar.
Assim, Jordan Peele chega ao seu terceiro filme invicto, não buscando se encaixar no passado, mas, sim, abrindo as portas para o futuro, deixando suas obras-primas muito bem documentadas, sem dar espaço algum para apagamento. O diretor encarou Hollywood nos olhos e a fera se curvou.
Veja o trailer do filme: