Ela Disse (She Said, 2022). O título do filme em cartaz desde quinta-feira (8) nos cinemas é bastante claro quanto ao que se verá nas telas: esta é uma história protagonizada por mulheres — estão no elenco Carey Mulligan, Zoe Kazan, Patricia Clarkson, Samantha Morton, Jennifer Ehle e Ashley Judd (no papel dela mesma). Esta é uma história contada por mulheres — a alemã Maria Schrader, realizadora da minissérie Nada Ortodoxa (2020) e do longa-metragem O Homem Ideal (2021), dirige um roteiro escrito pela inglesa Rebecca Lenkiewicz, coautora de Ida (2013) e Desobediência (2017), a partir de livro das jornalistas estadunidenses Megan Twohey e Jodi Kantor, do New York Times. Mais do que isso, esta é uma história em que as palavras das mulheres são ouvidas, e não menosprezadas, distorcidas, silenciadas.
No centro de tudo, contudo, há um homem. Talvez o maior predador sexual de Hollywood: Harvey Weinstein, hoje com 70 anos, produtor ganhador do Oscar por Shakespeare Apaixonado (1998) e indicado por Gangues de Nova York (2002). Desde que as primeiras denúncias de assédio e estupro vieram à tona, em outubro de 2017, pelo menos 82 atrizes, secretárias, assistentes e outras profissionais da indústria cinematográfica apresentaram queixas contra esse poderoso chefão. À frente da Miramax (fundada em 1979 com seu irmão, Bob) ou da The Weinstein Company (2005-2018), Harvey bancou filmes como sexo, mentiras & videotape (1989), Pulp Fiction (1994), a trilogia O Senhor dos Anéis (2001-2003) e O Discurso do Rei (2010). Em 2020, ele foi condenado a 23 anos de prisão.
Weinstein mal aparece em Ela Disse. Aliás, mal é um personagem. Encarnado pelo ator Mike Houston, surge apenas de longe ou pelas costas. Ou então em breves e ríspidas conversas telefônicas.
É um trunfo do filme. Ao mesmo tempo em que não dá palco para o vilão, relembra que não existe um único vilão: há toda uma cultura e todo um sistema que protegem os estupradores, especialmente quando têm dinheiro e status. Quantos Weinsteins estão por aí, impunes ou sequer descobertos?
Expor as engrenagens dessa máquina de abuso, intimidação e represálias é o objetivo das duas personagens principais: as próprias Megan Twohey, vivida por Carey Mulligan, concorrente ao Oscar de melhor atriz por Educação (2020) e Bela Vingança (2020), e Jodi Kantor, interpretada por Zoe Kazan, das minisséries Olive Kitteridge (2014), The Plot Against America (2020) e Clickbait (2021). Não à toa, quando o filme começa Twohey está no encalço de ninguém menos do que Donald Trump, então candidato à Presidência dos Estados Unidos.
Esse início de Ela Disse, embora eficiente em mostrar um padrão de agressão sexual, difamação da vítima e ameaça à imprensa, adota um ritmo claudicante para apresentar Twohey e Kantor nas suas rotinas profissionais e nas suas vidas domésticas. É como se faltasse cola entre uma cena e a outra. Também salta aos ouvidos um ponto ambíguo do filme: a trilha sonora composta por Nicholas Britell, ganhador do Emmy pela série Succession (2018-) e indicado ao Oscar por Moonlight (2016), Se a Rua Beale Falasse (2018) e Não Olhe para Cima (2021), é bonita, mas intrusiva. A todo instante é usada para induzir a emoção do espectador.
A partir do momento em que as duas repórteres se unem na mesma investigação, a música segue onipresente, a narrativa fica mais coesa, e Ela Disse busca aproximar-se de algumas obras famosas sobre jornalismo, como Todos os Homens do Presidente (1976) e Spotlight: Segredos Revelados (2015). Mas por mais que a trilha carregue na atmosfera de suspense, aqui os trâmites jornalísticos não se mostram eletrizantes — e ficou romantizada em demasia a cena em que um editor aperta o botão para a publicação da reportagem de Twohey e Kantor. Ou mesmo totalmente compreensíveis para o público leigo — fácil de entender é que o New York Times tem orçamento suficiente para fazer uma jornalista viajar para o Exterior sem garantia de que ela vai conseguir a entrevista desejada. Da mesma forma, convém ao espectador desinformado sobre Hollywood pesquisar um pouco sobre personagens envolvidos no caso Harvey Weinstein, como as atrizes Gwyneth Paltrow, Rose McGowan e Ashley Judd: o filme não se preocupa em biografá-las.
Voltando ao início deste texto, a força de Ela Disse está expressa em seu título. A diretora Maria Schrader mostra como a obstinação e a empatia de Twohey e Kantor — cujo trabalho contribuiu bastante para o surgimento do movimento #metoo — criaram o ambiente favorável para que as mulheres abusadas por Harvey Weinstein ou testemunhas de seus crimes falassem, revelando o modus operandi do violador e as vis estratégias jurídicas para o abafamento dos casos. Um grande acerto é o de evitar as reencenações, que poderiam, mesmo que sem intenção, escorregar para a exploração do trauma: basta a memória dolorida das entrevistadas, bastam as suas palavras entremeadas por lágrimas ou marcadas pela raiva. Ainda que um flashback aleatório seja uma distração desnecessária, é antológico o monólogo da personagem de Samantha Morton, que, nos seus poucos minutos em cena, provoca arrepio e revolta. E é absolutamente catártica a participação de Ashley Judd, 54 anos, uma das primeiras atrizes a quebrar o silêncio que protegia Weinstein. Quando a câmera foca no seu rosto iluminado pelo sol, com um sorriso se desenhando e os olhos cor de avelã fitando o horizonte, há de se acreditar na transformação, na justiça e no futuro.