Aftersun (2022) me pegou em cheio. E não fui só eu: em cartaz desde quinta-feira (1) nos cinemas Espaço Bourbon Country e GNC Moinhos, em Porto Alegre, o filme escrito e dirigido pela escocesa Charlotte Wells já ganhou prêmios no Festival de Cannes, em Palm Springs e na Mostra Internacional de São Paulo. Valeu a sua cineasta o troféu Bingham Ray de realizadora estreante, no Gotham Awards (destinado a produções com orçamento de até US$ 35 milhões). Concorre em cinco categorias na 38ª premiação do Film Independent Spirit, em 4 de março. E acaba de ser escolhido pela revista estadunidense IndieWire como o melhor longa-metragem de 2022. Periga beliscar alguma indicação ao Oscar.
Em pouco mais de 100 minutos, o belíssimo Aftersun conta a história de um pai divorciado e sua filha de 11 anos durante uma viagem de férias pela Turquia, na década de 1990, quando a Macarena ainda era coqueluche mundial. Ele é Calum, interpretado por Paul Mescal, protagonista da minissérie Normal People (2020) e coadjuvante em A Filha Perdida (2021). Ela é Sophie, vivida pela novata Frankie Corio. Ambos estão encantadores, e a química entre os dois opera a mágica de acharmos que são pai e filha de verdade.
Há uma terceira personagem importante: a Sophie 20 anos mais velha (Celia Rowlson-Hall). Ela surge no reflexo de uma TV, assistindo às cenas do passeio gravadas por uma filmadora caseira. Sophie também é vista no que parece ser uma festa, mas a luz estroboscópica do ambiente também funciona como uma representação do quanto a perturba revisitar suas recordações. Seu olhar melancólico completa o alerta: durante aqueles dias ensolarados na Turquia, em meio aos banhos de piscina e aos mergulhos no mar, às tardes no fliperama e às noites no karaokê, às piadas internas ("Torremolinos!") e às bebidas coloridas, algo aconteceu, algo se perdeu, algo se quebrou.
Mas o quê?, pode se perguntar o espectador diante da doçura com a qual Calum trata a filha e da adoração que ela tem por ele. Aqui está o ponto: agora adulta, Sophie pode — por mais doloroso que seja — vasculhar suas memórias à procura das fissuras que não enxergamos na infância. Daí o título (estranhamente mantido em inglês no Brasil): depois do Sol, vem a noite, estão as sombras. Daí, também, que a direção de fotografia assinada por Gregory Oke e a edição realizada por Blair McClendon trabalham com texturas e buscam detalhes. Assim como Sophie, na pré-adolescência, faz um esforço silencioso para roçar o seu braço no de um menino enquanto brincam no fliperama ou espia pelo buraco da fechadura a conversa de duas garotas sobre aventuras sexuais, a montagem estende os planos ou muda o ângulo para flagrar um olhar de soslaio de Calum, um suspiro pesaroso, um silêncio revelador.
Ou nem tão revelador. Um dos trunfos de Aftersun é jamais ceder à tentação de ser explicativo em demasia. Afinal, estamos trafegando nas águas turvas da memória, que nunca é estática, está sempre em transformação, sempre em fabricação. Por um lado, Sophie é uma voyeur de sua infância, desnudando para o público um momento marcante de sua vida; por outro, ela pode estar evitando confrontar certas lembranças, nomear o indizível.
Nesse sentido, foi escolhida a dedo a canção que a guria interpreta no karaokê, Losing my Religion (1991), da banda estadunidense R.E.M., cuja letra diz assim: "Aquele sou eu no canto / Aquele sou eu sob os holofotes / Perdendo minha fé / Tentando te acompanhar / E eu não sei se eu consigo fazer isso (...) / Pensei ter ouvido você rindo / Pensei ter ouvido você cantar / Eu acho que pensei ter visto você tentar / Mas aquilo foi apenas um sonho / Aquilo foi apenas um sonho".