Ao indicar Ana de Armas ao Oscar 2023 de melhor atriz, por Blonde, em cartaz na Netflix, a Academia de Hollywood criou uma espécie de trilogia: a das cinebiografias ruins (ou no mínimo muito convencionais) de artistas femininas poderosas que acabam disputando o mais famoso prêmio do cinema mundial.
Já tinha acontecido com Judy: Muito Além do Arco-Íris (2019), que valeu a Renée Zellweger a estatueta dourada de melhor atriz no papel de Judy Garland, e com Estados Unidos vs Billie Holiday (2021), pelo qual Andra Day concorreu ao Oscar. O caso de Blonde é mais grave. Não à toa, o título lidera a lista do Framboesa de Ouro, a premiação de galhofa criada por um publicitário de Los Angeles. Foram oito indicações: pior filme, pior diretor (Andrew Dominik), pior roteiro, pior remake, cópia ou sequência, pior ator coadjuvante (Xavier Samuel e Evan Williams) e pior casal (em outra dobradinha: os personagens reais na cena da cama na Casa Branca e "Andrew Dominik e seus problemas com as mulheres"). A Academia não deveria dar holofote
Justiça seja feita, o Oscar está apenas repetindo o que fizeram o Globo de Ouro (concedido pela Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood), o SAG Awards (o troféu do Sindicato dos Atores dos EUA) e o Bafta (da Academia Britânica), que também indicaram Ana de Armas. Parece menos um reconhecimento ao trabalho da atriz do que um ato de consolação, uma espécie de operação de resgate para uma estrela ascendente da indústria cinematográfica que terminou submergida em um naufrágio.
Personagem de Blonde, Marilyn Monroe (1926-1962) passou boa parte da sua curta carreira tentando provar que era mais do que um símbolo sexual. Também foi uma atriz que soube reinventar a si mesma e que, nos tempos em que os grandes estúdios de Hollywood ainda impunham contratos draconianos a suas estrelas, lutou para ter controle sobre sua carreira, a ponto de criar sua própria produtora.
Pois bem. O que Blonde faz é focar na vida sexual da atriz de filmes como Os Homens Preferem as Loiras (1953), O Pecado Mora ao Lado (1955) e Nunca Fui Santa (1956) e retratá-la como uma eterna vítima, uma figura frágil e inocente que, por conta de traumas da infância, acabou comandada e abusada por homens.
Antes de mais nada, é preciso fazer uma ressalva: cinebiografias não são documentários (que também trazem visões parciais e subjetivas da realidade, ao contrário do que se pode pensar), portanto, estão sempre mais sujeitas a liberdades artísticas, lacunas e exageros — um exemplo recente é o de Elvis (2022), o olhar singular de Baz Luhrmann para outro trágico ícone do século 20. No caso de Blonde, o diretor neozelandês Dominik tinha mais licença poética ainda, pois escreveu o roteiro a partir de uma versão ficcional da trajetória de Marilyn Monroe.
O sexto longa-metragem do realizador de Chopper: Memórias de um Assassino (2000), O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007), O Homem da Máfia (2012) e de dois documentários sobre o músico Nick Cave é baseado no livro Blonde, romance publicado em 2000 pela escritora estadunidense Joyce Carol Oates. Ao longo de 810 páginas (na edição brasileira, dividida em dois volumes, relançada pela Harper Collins), Oates reimagina, expande ou condensa as agruras da infância de Norma Jeane Baker, a conturbada adolescência — quando, aos 16 anos, casou-se com o filho de um vizinho —, o início da carreira como modelo pinup, a transformação em Marilyn Monroe, o sucesso em Hollywood, as crises de autoestima, ansiedade e depressão, a dependência química (a causa declarada de sua morte foi overdose de remédios barbitúricos), os rumores de um relacionamento a três com Charles Chaplin Jr. e Edward G. Robinson Jr. (no filme, interpretados por Xavier Samuel e Evan Williams), os casamentos com o ex-jogador de beisebol Joe DiMaggio (Bobby Cannavale) e com o dramaturgo Arthur Miller (Adrien Brody), o suposto caso com o presidente John F. Kennedy (Caspar Phillipson), os abortos sofridos, as tentativas de suicídio e a solidão de seus últimos dias.
Quem leu o livro e viu o filme, como o crítico porto-alegrense radicado nos EUA Waldemar Dalenogare Neto, primeiro sul-americano a ingressar na Critics Choice Association, diz que as partes pesadas e polêmicas da adaptação estão presentes na obra original, da mesma forma que a visão de Marilyn como uma atriz sabotada e violentada por um mundo masculino. O problema, ou melhor, um dos problemas mais nítidos é o recorte escolhido por Dominik — outro é a inconsistência estilística: se Baz Luhrmann casou bem o seu pendor para a grandiloquência e o frenesi com o espírito irrequieto e as extravagâncias de Elvis Presley, em Blonde, por exemplo, não parece haver sentido na alternância entre imagens coloridas e cenas em preto e branco empregada pelo diretor de fotografia Chayse Irvin. (A não ser que a ideia seja aludir ao fato de que Marilyn estrelou tanto filmes coloridos quanto em P&B...)
Blonde é um filme longo, tem duas horas e 46 minutos, mas toma atalhos temporais que prejudicam o entendimento de sua protagonista. A história começa mostrando Norma Jeane criança (papel de Lily Fisher), convivendo com uma mãe desempregada, alcoolista e mentalmente desequilibrada, Gladys (Julianne Nicholson, da minissérie Mare of Easttown). Gladys culpa a filha pelo desaparecimento do pai. A insanidade materna e a ausência paterna vão exercer um peso gigantesco em Marilyn Monroe, mas Dominik pula sua vida em orfanatos e lares adotivos, omite toda a adolescência de Norma Jeane e comprime sua metamorfose em símbolo sexual a uma montagem com capas e pôsteres de revistas.
O objetivo é claro: o diretor quer chegar logo à fase em que pode explorar sexualmente a personagem. E aí, sobra também para Ana de Armas, atriz cubana vista em títulos como Blade Runner 2049 (2017), Entre Facas e Segredos (2019), 007: Sem Tempo para Morrer (2021) e Águas Profundas (2022). Ela se esforça para encarnar Marilyn, caprichando especialmente na voz. Porém, é no seu corpo que Dominik parece estar mais interessado — vide a longa recriação, em câmera lenta e por vários ângulos, da clássica cena de O Pecado Mora ao Lado, na qual a personagem vivida por Marilyn tem sua saia levantada pelo passar dos trens no metrô de Nova York. Em Blonde, Ana aparece nua várias vezes e estrela alguns momentos de sexo quase explícito, incluindo um ménage à trois com Cass Chaplin e Eddy Robinson Jr.
Quando não mira o sexo, Dominik prioriza o sofrimento da protagonista, seja psicológico ou mesmo físico, assim como seus problemas nos bastidores de produções cinematográficas. Os dias de glória são geralmente encarados sob um prisma sombrio, como na sessão de estreia de Quanto Mais Quente Melhor (1959) — que acabaria rendendo o Globo de Ouro de melhor atriz em comédia ou musical: a multidão de fotógrafos e fãs assemelha-se a uma matilha prestes a atacar sua presa.