Depois de disputar quatro vezes seguidas o Oscar — por O Fantástico Sr. Raposo (2009), Moonrise Kingdom (2012), O Grande Hotel Budapeste (2014) e Ilha dos Cachorros (2018) —, o cineasta texano Wes Anderson foi completamente ignorado pela Academia de Hollywood. Para a premiação do dia 27 de março, a entidade não destacou A Crônica Francesa (The French Dispatch) nem nas categorias mais técnicas, como design de produção e figurinos, ambas indicadas ao Bafta. Eleito o sexto melhor de 2021 pelos críticos da prestigiada revista parisiense Cahiers du Cinèma, o filme em cartaz no Star+ é uma celebração do jornalismo, da vocação da França para a arte, a política e a gastronomia e do próprio esmero estético de Anderson.
Como escrevi quando A Crônica Francesa estreou nos cinemas, em novembro passado, poucos cineastas têm uma assinatura tão inconfundível — e tão imutável — quanto Anderson, 52 anos, que acumula sete indicações ao Oscar, sendo três por O Grande Hotel Budapeste: melhor filme, diretor e roteiro original. Por essa categoria, concorreu também com Os Excêntricos Tenenbaums (2001) e Moonrise Kingdom. E disputou o troféu de melhor animação por O Fantástico Sr. Raposo e Ilha dos Cachorros.
Anderson também goza de prestígio nos festivais europeus. Em Berlim, levou o Grande Prêmio do Júri por O Grande Hotel Budapeste e o Urso de Prata de melhor diretor por Ilha dos Cachorros. Em Veneza, recebeu o Pequeno Leão de Ouro por Viagem a Darjeeling (2007). Em Cannes, competiu com Moonrise Kingdom e voltou com A Crônica Francesa, seu décimo longa-metragem.
O cineasta começou a refinar seu estilo no terceiro trabalho da carreira, Os Excêntricos Tenenbaums, depois de Pura Adrenalina (Bottle Rocket, 1996) e Três É Demais (Rushmore, 1998). São marcas de Anderson a nostalgia por uma infância perdida (ele tinha oito anos quando seus pais se separaram) e as relações familiares conturbadas (geralmente, por causa de um pai negligente). Seus filmes são como tragicômicos contos de fadas para adultos, com um inescapável final feliz — ou quase isso. Como modelos, temos a animação em stop-motion O Fantástico Sr. Raposo, adaptada de uma história do escritor escocês Roald Dahl (o mesmo de A Fantástica Fábrica de Chocolate e Convenção das Bruxas), e Moonrise Kingdom, em que os personagens Suzy Bishop e Sam Shakusky, ambos com 12 anos, descobrem-se subitamente apaixonados e decidem fugir para seu idílio, o paradisíaco "Reino do Nascer da Lua" do título. O detalhe é que eles moram numa diminuta ilha e, portanto, serão logo encontrados pelos pais de Suzy, pelo grupo de escoteiros de Sam e pelo único policial do lugarejo.
A identidade visual salta aos olhos. Em parceria com o diretor de fotografia Robert Yeoman (presente em todas as suas obras exceto as duas animações) e com a colaboração de nomes como o do editor Andrew Weisblum, o do designer de produção e diretor de arte Adam Stockhausen e o da figurinista Milena Canonero, Wes Anderson desenvolveu o conceito da casa de bonecas. Seus filmes criam um mundo à parte, no qual ele pode brincar com suas obsessões temáticas — que incluem adultos que agem como crianças e vice-versa — e estilísticas. A câmera, por exemplo, costuma ficar fixa, só se movimentando quando for para passar de um ambiente ao outro sem que haja corte. Volta e meia, se afasta para flagrar os personagens de longe, como se fossem miniaturas.
Os atores, por sua vez, estão centralizados, o que contribui para a simetria buscada em cada cena — tudo é milimetricamente alinhado, da cenografia e da paleta de cores às posições do elenco —, e não raro olham diretamente para o espectador, o que contribui para a ligação emocional. Ainda que por vezes guardem mágoas ou traumas, são tipos cartunescos e extravagantes, condição ressaltada pelo uso de uniformes: eles praticamente usam sempre as mesmas roupas, como o abrigo vermelho de Ben Stiller em Os Excêntricos Tenenbaums.
Anderson gosta de povoar suas casinhas com bonecas vistosas. Convoca sempre um time de estrelas, repetindo e agregando nomes — é como se o diretor estivesse tentando restabelecer a conexão familiar. Bill Murray atuou ou emprestou a voz em nove filmes. Owen Wilson apareceu em sete. Jason Schwartzman, em seis, Anjelica Huston, em cinco, e Bob Balaban, Adrien Brody, Edward Norton e Tilda Swinton, em quatro. Em A Crônica Francesa, o cineasta reúne vários hóspedes de O Grande Hotel Budapeste, seu maior sucesso no Oscar (ganhou as estatuetas de design de produção, figurino, maquiagem/cabelos e trilha sonora, de Alexandre Desplat, também compositor da música do novo filme) e nas bilheterias (US$ 172,9 milhões). Além de Murray, Wilson, Schwartman, Balaban, Brody, Norton e Swinton, estão lá os franceses Mathieu Amalric e Léa Seydoux e a irlandesa Saoirse Ronan. Há ainda Timothée Chalamet, Frances McDormand, Willem Dafoe, Elisabeth Moss, Jeffrey Wright e Liev Schreiber. E o porto-riquenho Benicio Del Toro, a argelina Lyna Khoudri, o austríaco Christoph Waltz, a belga Cécile de France...
A quantidade de atores e atrizes é um indicativo tanto das virtudes exibidas por A Crônica Francesa quanto dos desafios — ainda que, talvez, divertidos — impostos ao espectador. O enorme elenco se divide em, basicamente, quatro núcleos. O primeiro deles é a redação da fictícia revista estadunidense The French Dispatch, situada em uma também fictícia cidade francesa, Ennui-sur-Blasé (algo como "tédio sobre indiferença") — palco do mais tradicional festival europeu de quadrinhos, Angoulême serviu de dublê.
The French Dispatch é um simulacro da The New Yorker: o ano de fundação das duas é o mesmo, 1925, ambas praticam o chamado jornalismo literário, e graficamente a publicação de mentirinha remete à verdadeira, incluindo o emprego de ilustração na capa — o cargo de artista pertence a Hermès Jones, papel de Jason Schwartzman. O editor é Arthur Howitzer Jr., interpretado por Bill Murray, personagem definido como duro com todos (uma placa em sua sala diz "Não chore"), exceto os redatores, e dado a aforismos como:
— Apenas tente fazer parecer que você escreveu dessa forma de propósito.
É tanto uma declaração de amor ao ato de contar histórias, de procurá-las e de encontrar a melhor forma de narrá-las, quanto um comentário autoindulgente ou irônico (depende do freguês) sobre o modo de produção de Wes Anderson, um diretor obcecado por encher suas imagens dos mínimos detalhes — que são exibidos tipo troféus pelo capricho artístico, como as máquinas de escrever retrô batizadas de Andretti em A Crônica Francesa.
Fazendo o uso habitual das legendas informativas, da voz de um narrador e de comentários sobre as cenas, Anderson estrutura o filme como se fosse o último número da revista — cada episódio corresponde a um número xis de páginas. Em respeito ao testamento do editor Howitzer, a French Dispatch deixará de ser publicada após a morte dele, em 1975. A edição de despedida deve circular contendo o seu obituário e três celebrados artigos previamente publicados. Antes das respectivas dramatizações — todas em preto e branco —, porém, o repórter ciclista Herbsaint Sazerac (Owen Wilson) passeia por Ennui para comparar o antes e o hoje de áreas e endereços marcantes, demonstrando "o quanto mudou e ainda o quão pouco mudou" ao longo do tempo.
Um contumaz viajante ao passado — Os Excêntricos Tenenbaums mostrava uma Nova York setentista, Moonrise Kingdom é ambientado no meio dos anos 1960, O Grande Hotel Budapeste partia dos dias atuais para recuar até 1985, depois 1968 e se concentrar na década de 1930 — e um contumaz criador de nomes bizarros (vide Royal Tenenbaum, Pelé dos Santos, Zero Moustafa), Anderson se esbaldou em A Crônica Francesa. A primeira reportagem encenada, A Obra-Prima Concreta, se passa, provavelmente, entre os anos 1920 e os 1930, já que é inspirado em uma reportagem da New Yorker sobre o britânico Joseph Duveen (1869-1939), um controverso negociante de arte. Na ficção, encarnado por Adrien Brody, ele se chama Julian Cadazio e é colega de prisão do pintor Moses Rosenthaler (Benicio Del Toro). Portador de algum distúrbio mental, o artista foi condenado por duplo homicídio e, na cadeia, faz retratos abstratos da carcereira Simone (Léa Seydoux), que tira a roupa para Rosenthaler por um duplo motivo: o artístico e o amoroso.
A segunda história, Revisões a um Manifesto, parodia os protestos estudantis do maio de 1968 em Paris. Timothée Chalamet interpreta o líder das manifestações, Zeffirelli. Por fim, em época incerta, A Sala de Jantar Privada do Comissário de Polícia é uma trama que envolve o sequestro de um menino e os refinados pratos preparados por um tenente que também é chef de cozinha, batizado de Nescaffier (Stephen Park). Cada matéria é narrada por seu respectivo jornalista, em diferentes ambientes. J.K.L. Berensen (Tilda Swinton) está dando uma palestra. Lucinda Krementz (Frances McDormand) escreve um diário. Roebuck Wright (Jeffrey Wright) concede uma entrevista na TV, nos anos 1970, para um apresentador vivido por Liev Schreiber.
Aí está uma característica de Wes Anderson que parece ter virado o fio em A Crônica Francesa: a verborragia. É tanto falatório — e na redação da French Dispatch o intervalo entre diálogos é preenchido por murmúrios propositadamente ininteligíveis —, que por vezes o espectador pode sentir vontade de apertar a tecla pause. Mas não apenas para respirar entre uma história e a outra, que, à primeira vista, parecem desconectadas. Também para, quem sabe, melhor apreciar a pintura que é cada cena, a geometria particularíssima do cineasta, as transições ora surpreendentes, ora óbvias da fotografia em preto e branco para o colorido, as sequências em animação, os momentos de tela dividida ao meio e a riqueza dos cenários. Ou então para tentar identificar o elenco estelar quando há uma multidão de personagens em cena. Essa abundância textual e visual cobram uma atenção intensa e acabam por provocar um distanciamento emocional. Estamos longe daquela ternura e daquela humanidade desenvolvidas em Os Excêntricos Tenenbaums, A Vida Marinha com Steve Zissou (2004), Moonrise Kingdom e O Grande Hotel Budapeste.
A Crônica Francesa é bonito de ver e muito criativo, mas também é um filme que pode ser encarado como frio (exceto no segmento com Del Toro e Seydoux), cansativo (apesar de durar menos de duas horas), excessivo (o elenco tem mais de 300 nomes, e consta que foram produzidos cerca de 130 sets!) e até complicado. Vide a passagem de A Sala de Jantar Privada do Comissário de Polícia em que metade da imagem mostra o menu servido por Nescaffier e a outra metade acompanha uma ação. Enquanto isso, há uma narração em off, algumas falas de personagens e letreiros informativos. Só vendo duas vezes para tentar pegar tudo. Ou dando pause.