1. Uma revolta extingue o tédio
O período entre o final da II Guerra Mundial, em 1945, e a crise do petróleo, no início dos anos 1970, foi considerado a Era de Ouro do capitalismo. Nesse intervalo, a economia mundial experimentou uma taxa de crescimento sem precedentes. Entre 1950 e 1973, a renda per capita na Europa ocidental aumentou a 4,1% ao ano. Apenas a Alemanha Ocidental alcançou 5%, e o Japão, surpreendentes 8,1%, segundo números do economista Ha-Joon Chang, da Universidade de Cambridge. Os EUA cresceram a 2,5%. O desemprego foi praticamente eliminado dos países capitalistas avançados, e a taxa de inflação era relativamente baixa. Mas, no subterrâneo das subjetividades, uma revolução estava sendo gestada. Ou melhor, várias. Era "o mal-estar na prosperidade", na precisa expressão que dá título a uma seção de um livro do historiador Tony Judt. Tudo irrompeu em 1968.
Foi o ano dos protestos contra a Guerra do Vietnã, do assassinato de Martin Luther King, da Primavera de Praga, do Massacre de Tlatelolco, no México, e, no Brasil, da morte do estudante Edson Luis e da Marcha dos 100 Mil. No quadro mais amplo, a Guerra Fria opunha o bloco capitalista liderado pelos EUA ao bloco socialista da então União Soviética.
Em 22 de março, apenas sete dias depois que o jornalista Pierre Viansson-Ponté escreveu no jornal Le Monde que o tédio caracterizava a vida pública na França e que os franceses não estavam tomando parte nas grandes convulsões do mundo, cerca de cem estudantes ocuparam o prédio administrativo da Universidade de Nanterre, perto de Paris. Dois meses depois, a revolta adolescente liderada pelo então estudante de Sociologia (e, tempos depois, deputado do Parlamento Europeu) Daniel Cohn-Bendit chegou à capital do país, onde jovens e policiais entraram em violentos confrontos, resultando em centenas de feridos. A Sorbonne nunca mais foi a mesma. Logo a inquietação cresceu e se transformou em uma série de greves de trabalhadores que parou a França.
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Coube aos que vieram depois a tarefa de interpretar as motivações do Maio de 1968. Os debates continuam após 50 anos, completados neste mês. Em uma entrevista concedida ao filósofo Jean-Paul Sartre no calor dos acontecimentos, Cohn-Bendit declarou que a força do movimento era sua "espontaneidade incontrolável". Criar uma organização ou definir um programa, em seu ponto de vista, "iria inevitavelmente nos paralisar". Refletindo sobre os 50 anos do movimento em uma entrevista recente à New York Review of Books, Cohn-Bendit afirmou que aqueles "libertários de esquerda" eram anticapitalistas e anticomunistas ao mesmo tempo: "Não tínhamos a intenção de lançar um novo Partido Comunista, mas simplesmente descobrir como construir novas redes e alianças – in situ e envolvendo trabalhadores migrantes pela primeira vez".
2. Um personagem não sai de cena
Os slogans ofereciam algumas pistas: "Seja realista, peça o impossível", "A barricada fecha a rua, mas abre o caminho" e "É proibido proibir", que no Brasil virou título de uma canção de Caetano Veloso contra a ditadura militar, apresentada por ele e pelos Mutantes, sob vaias, na eliminatória paulista do 3º Festival Internacional da Canção daquele ano. Foram os herdeiros do segmento privilegiado da sociedade francesa que saíram às ruas, como observa o documentarista João Moreira Salles, que recentemente mergulhou em imagens da época no filme No Intenso Agora (2017). Embora falassem da queda do presidente Charles de Gaulle, da resistência à Guerra do Vietnã e de socialismo, o que aqueles jovens queriam era “viver de outro modo”, afirma Salles em entrevista a GaúchaZH:
– O motor dos protestos era outro, menos programático, um desejo de não se conformar, de não entrar nos trilhos de uma vida planejada, medida pela aquisição de coisas; de não viver numa sociedade apartada, em que uns seriam responsáveis pelo trabalho intelectual enquanto outros se matavam nas fábricas insalubres. Isso é moderno. Basta pensar em junho de 2013 (no Brasil): quem saiu às ruas não foram os deserdados do abismo social brasileiro. Foi gente que nasceu do lado menos cruel de nossa desigualdade e sentia um incômodo existencial com o velho Brasil. Não queriam a queda de Dilma, queriam outra coisa, outro contrato social, outro país. Nesse sentido, em que pese todas as diferenças, Maio de 1968 e os movimentos sociais do século 21 convergem.
No final das contas, 1968 foi o ano que não terminou, na expressão que dá título a um livro referencial de Zuenir Ventura sobre o período, lançado em 1989. Em 2008, o jornalista e escritor fez um balanço daquela geração em um segundo livro, 1968 – O Que Fizemos de Nós (ambos editados pela Objetiva). Em depoimento a GaúchaZH, Zuenir admite que ainda não encontrou uma explicação definitiva para aquela "misteriosa sincronia que juntou em torno de anseios e ideias comuns uma geração de países tão diferentes, produzindo uma insurreição de jovens que pela primeira vez, sem internet, teve dimensão planetária":
– Aqueles jovens que acreditavam estar fazendo uma revolução política, na verdade, fizeram uma revolução comportamental, contestando todas as instituições, da escola ao princípio de autoridade, das relações familiares às sexuais, das roupas ao corte de cabelo. No Brasil, em lugar da "sociedade de consumo", do "sistema", os jovens tinham um inimigo concreto, que censurava, torturava e matava. A geração brasileira de 1968 foi a mais sofrida e corajosa. Ela doou a uma causa os melhores anos de suas vidas. Em 13 de dezembro, com o famigerado AI-5 (o Ato Institucional nº 5, que endureceu a repressão na ditadura militar), seus sonhos foram interrompidos. Talvez por isso, 50 anos depois, 1968 não acaba de não acabar. Parece não um ano, mas um personagem que teima em não sair de cena.
3. Marcha para a história
Embora tenha se tornado o evento-síntese daquele ano, o maio francês foi mais pacífico do que outras ações revolucionárias pelo mundo e mais do que eventos do passado da própria França, como anotou Tony Judt no livro Pós-Guerra – Uma História da Europa desde 1945 (Objetiva). "Os autores dos lemas de maio de 1968 jamais pedem aos leitores que façam mal a alguém", escreveu o historiador. "Essa revolução não teve vítimas, o que, no final das contas, quer dizer que não foi, absolutamente, uma revolução." A reação veio rápido. Em 30 de maio, uma multidão em defesa da ordem marchou pela Champs-Elysées, em Paris, e os partidos aliados do presidente Charles De Gaulle obtiveram uma acachapante vitória em uma eleição-geral. De Gaulle renunciou em 1969, após perder um referendo sobre a reorganização territorial do país, e morreu no ano seguinte.
Na então Tchecoslováquia, o movimento em direção a um "socialismo com rosto humano" liderado pelo primeiro-ministro Alexander Dubcek foi enterrado pelas tropas do Pacto de Varsóvia, e a Primavera de Praga deu lugar a 23 anos de ocupação soviética. Apesar dos protestos contra a Guerra do Vietnã, as forças norte-americanas se retiraram apenas em 1973 – e outras guerras seriam travadas até hoje pelos EUA. Em um episódio menos conhecido, mas não menos representativo, estudantes críticos ao governo mexicano foram assassinados em outubro de 1968 na Praça de Tlatelolco, poucos dias antes dos Jogos Olímpicos na Cidade do México. E, no final do ano, o Brasil entrou no período mais sangrento da ditadura militar, com o AI-5. O regime de exceção terminaria oficialmente apenas em 1985.
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Em um ensaio sobre 1968 na França, na Tchecoslováquia e no México, Carlos Fuentes sugere que as derrotas dos movimentos estudantis e do "socialismo com rosto humano" de Dubcek foram "fracassos pírricos", ou seja, derrotas imediatas que resultaram em vitórias a longo prazo. Para o escritor mexicano nascido no Panamá, o partido socialista francês saiu renovado daquele maio histórico.
Em 1981, François Mitterrand foi eleito presidente na França, depois de 23 anos de governos conservadores. Um dos líderes da dissidência de Praga em 1968, o dramaturgo Václav Havel foi eleito presidente interino da Tchecoslováquia em 1989 e confirmado em 1990, tornando-se o primeiro líder não comunista desde 1948. "E, no México, por fim", prossegue Fuentes, "não é compreensível a história do país de 1968 para cá sem a história do país antes e durante o ano de 1968". O economista, psicanalista e crítico de cinema Enéas de Souza analisa:
– O projeto da utopia de Maio de 1968 vinha com uma transformação profunda nas relações políticas, econômicas, sociais, culturais e subjetivas na direção de uma sociedade socialista e libertária.
Por razões de combate político, a classe operária não se aliou aos estudantes, artistas e intelectuais, e acabou por ocorrer uma cisão irrecuperável entre a política e a cultura. Havia o temor de uma derrota irreversível do proletariado, por isso o PCF (Partido Comunista Francês) resistiu a um projeto mais amplo, e, da parte da atuação cultural, havia a necessidade de uma ação imediata e integrada das duas áreas.
A despeito do julgamento da História, o espírito de 1968 ainda vive hoje em manifestações contra o status quo, como as que eclodiram em junho de 2013 no Brasil. Essa é a avaliação do filósofo Moysés Pinto Neto, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), para quem não há dúvida sobre a existência desses ecos:
– Primeiro, é preciso ver que a forma de organização baseada em redes horizontais e protagonismo jovem nasce na década de 1960 como uma alternativa ao centralismo do partido, a mediação pelos sindicatos e o culto ao líder. Além disso, o autonomismo atual é consequência dessa postura independente da burocracia partidária e constituinte do seu próprio campo. Quando, em 2013, a menina afirma ao jornalista: "Anota aí, sou ninguém", está fazendo o mesmo tipo de questionamento da liderança carismática que faziam os jovens de 1968.
4. Nasce um novo feminismo
Em sua conferência no Fronteiras do Pensamento de 2008, por ocasião dos 40 anos do movimento, o pensador francês Edgar Morin observou que os anos 1960 produziram um importante fenômeno histórico: a autonomização da adolescência. Diferentemente do que ocorria nas sociedades tradicionais, nas quais os indivíduos passam da infância diretamente à vida adulta, aquele momento foi de constituição de uma cultura da adolescência, com sua música (o rock), seu modo de vestir (roupas coloridas, a minissaia) e seus hábitos. O sexo livre e desencanado era oportunizado pela pílula anticoncepcional, em uma época na qual a aids ainda não era uma ameaça. Os jovens aspiravam, segundo Morin, à autonomia (o desejo de serem livres) e à comunidade (uma vida em comum), duas demandas aparentemente contraditórias.
Para a jornalista Regina Zappa, coautora do livro 1968 – Eles Só Queriam Mudar o Mundo (Zahar), ao lado de Ernesto Soto, que ganhou segunda edição neste ano, o legado do movimento diz respeito, sobretudo, ao comportamento, aos direitos civis e às liberdades individuais:
– Os estudantes franceses começaram reivindicando igualdade e mudança nas universidades, onde os professores falavam aos alunos quase sempre de um púlpito, tornando-os de certa forma superiores, e onde eram proibidos dormitórios mistos. A universidade mudou. Na luta por direitos iguais, surgiu o feminismo. A relação entre pais e filhos tornou-se menos rígida, diminuindo o choque entre gerações. A luta coletiva por liberdade individuais ganhou espaço. Mas, apesar dos avanços, o que se aprende com 1968 é que as conquistas não são definitivas e podem sofrer retrocesso se não se permanece atento na luta.
É o que estão fazendo as feministas ao utilizar a internet e as redes sociais como ferramentas de empoderamento para conferir novo fôlego a um movimento que constituiu uma das mais duradouras conquistas dos anos 1960 – embora o feminismo tenha nascido muito antes. A desconstrução do estereótipo da mulher ideal não veio sem lutas, como lembra a professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS Rita Terezinha Schmidt:
– Sobretudo, havia muita reserva, e mesmo certa estigmatização, do termo "feminista", não só por causa da propagação do estereótipo da mulher em guerra contra os homens, mas também porque era visto como uma importação made in the US. Para a esquerda brasileira, que considerava os EUA como mentores do golpe que destituiu o então presidente João Goulart, o feminismo era um movimento sexista e pequeno-burguês. Por outro lado, para a direita conservadora, era visto como um atentado contra a tradição da família e dos bons costumes da sociedade.
Rita não crê haver, no cenário nacional, identificação das jovens de hoje com o feminismo da década de 1960, embora elas sejam "beneficiárias do saldo das lutas daquele período, cujo lema ‘o pessoal é político’ ainda está na ordem do dia":
– Há um novo feminismo no ar, insurgente e plural, catalisador de energias de vários grupos de minorias sexuais que lutam pelo direito de questionar imposições ditas "naturais" que sempre estiveram a serviço de exclusões de modo a ampliar o conceito de humanidade.
5. Epílogo
De certa forma, 1968 ainda está presente: desafiar a ordem nunca sai de moda. Sim, algumas coisas terminaram depois de maio, mas outras começaram. Para Moysés Pinto Neto, as demandas daqueles jovens "atravessavam e rompiam a diferença entre coletivo e individual, público e privado, indivíduo e sociedade". Na entrevista recente à New York Review of Books, Daniel Cohn-Bendit conta que, certa vez, foi abordado por um homem aparentando ter 10 anos a mais do que ele. Era um membro da CRS, a reserva da polícia francesa encarregada de manter a ordem pública, contra a qual os jovens de 1968 haviam lutado. "Sr. Cohn-Bendit, quero agradecê-lo", disse o homem. "Foi uma grande época, merci."
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