Olhar episódios históricos do passado a partir do presente é em si um ato de revelação – daquilo que vivemos e daquilo em que nos transformamos, hoje, devido a essa vivência. O impacto da revelação depende dos episódios em si, mas também do próprio olhar. É por isso que Em Nome da América, eleito o melhor documentário da Mostra de São Paulo do ano passado e estreia desta semana no CineBancários, é duplamente interessante: ilumina de maneira especialmente clara algo que ainda se apresenta obscuro diante de um exame mais superficial. O diretor, Fernando Weller, participa de sessão comentada, às 19h desta quinta-feira (19/4), com mediação do crítico de ZH Marcelo Perrone.
Carioca radicado em Pernambuco, Weller, 39 anos, pesquisa a agência governamental norte-americana Peace Corps há pelo menos uma década. Trata-se de um projeto criado pelo presidente John F. Kennedy, que em 1961 enviou emissários para 139 países. Oficialmente, o objetivo era nobre: prestar serviços que ajudassem a promover a paz mundial. No Brasil, o Nordeste foi especialmente atendido, recebendo milhares de voluntários que atuaram em projetos comunitários nas áreas da saúde e da educação e, principalmente, em cooperativas agrícolas.
Ao contextualizar a ação – citando o medo americano de que a Revolução Cubana de 1959 inspirasse outros países e o temor das elites brasileiras diante do movimento popular das Ligas Camponesas pré-golpe militar de 1964 –, Weller faz o primeiro questionamento à versão oficial dos fatos. O cineasta escancara as contradições daquele contexto social com uma série de imagens de arquivo raras, entre elas um filme caseiro rodado pelos voluntários, registros de discursos nem sempre claros de autoridades e uma cena chocante em que um latifundiário chamado Constâncio Maranhão dá tiros para o alto e para os lados enquanto expõe sua raiva diante dos empregados que ousam se organizar para reivindicar melhores condições de trabalho.
– Meu 38 é a lei aqui – ele diz, em trecho do documentário de curta-metragem The Troubled Land (1961), reproduzido por Weller.
A ponte Brasil-EUA no contexto de repressão dos anos 1960 faz lembrar O Dia que Durou 21 Anos (2012), de Camilo Tavares, e mesmo o clássico Jango (1984), de Silvio Tendler. Mas Em Nome da América tem a sua autenticidade – que se deve, em grande parte, à forma com que acessa as memórias compartilhadas do período.
Primeiro, quando Weller promove reencontros dos voluntários, em sua maioria idealistas usados pelo governo, com camponeses que eles conheceram – o que o olhar atual revela sobre aquele tempo vivido é particularmente instigante, e isso nos casos de todos os entrevistados. Segundo, e principalmente, quando o cineasta cita o trabalho de Joseph Page, que em A Revolução que Nunca Houve (livro traduzido por Ariano Suassuna e lançado pela editora Record) dá nome e sobrenome a pelo menos um espião da CIA que estaria entre os visitantes norte-americanos (Tim Hogen).
Lá pelas tantas, Em Nome da América ganha ares de um suspense, quase um policial investigativo do paradeiro de Hogen. Essa figura contraditória (ele nega ter sido espião) fortalece a ideia de ambiguidade das relações retratadas, deixando a fruição ainda mais interessante.
Mas o maior mérito de Weller é a capacidade de abordar essa história em todo o seu contexto, não só no que diz respeito às questões políticas, mas também às socioculturais – que se revelam justamente pela associação das imagens de arquivo e pelos encontros que ele promove. A desigualdade social escancarada nessas associações e nesses encontros, hoje talvez a grande chaga do país, já se evidenciava há mais de 50 anos. Perdura até hoje porque vivemos o que Em Nome da América retrata. E também porque documentamos e refletimos pouco sobre isso.
Em Nome da América
De Fernando Weller
Documentário, Brasil, 2017, 96min.
Estreia nesta quinta (19/4). Sessão comentada às 19h, no CineBancários, em Porto Alegre.
Cotação: 4 estrelas (de 5).