A diretora Camila de Moraes não havia completado um ano de idade e a produtora Mariani Ferreira nem havia nascido quando, em 14 de maio de 1987, uma quinta-feira, o operário negro Júlio César de Melo Pinto foi executado por policiais militares, ao ser confundido com assaltantes de um supermercado. O crime, ocorrido entre os bairros Partenon e Jardim do Salso, na zona leste de Porto Alegre, teve grande repercussão e ficou conhecido como Caso do Homem Errado.
Por meio de pesquisas e depoimentos, as jovens cineastas, de 30 e 29 anos, relembram o episódio no documentário O Caso do Homem Errado, que entra em cartaz nesta quinta-feira (22) na Capital, no CineBancários (Rua General Câmara, 424). Por uma trágica coincidência, o longa-metragem chega ao circuito comercial uma semana após a execução da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro. Também esse crime traz à tona discussões em torno da violência policial (a parlamentar era autora de denúncias nesse sentido), racismo e assassinatos de negros no Brasil.
– É bem simbólica a estreia do documentário nesse momento. Fizemos um filme sobre um homem negro que foi covardemente morto pela polícia e que estreia dias depois de uma mulher negra ser morta, ao que tudo indica, por sua posição contra a violência policial – afirma Mariani.
Camila segue a mesma linha de raciocínio:
– Viemos de uma estratégia de transformar o luto em lutas, porém, essa estratégia, por mais necessária que seja, é muito dolorosa, por perdemos uma vida nessa guerra, uma vida que tem cor, mais uma pessoa negra morta.
Para relembrar a morte de Júlio César e os fatos ocorridos na sequência, a equipe de filmagem, incluindo Maurício Borges de Medeiros, que, além da direção de fotografia, assina o roteiro com Camila e Mariani e também responde pela montagem, ouviu personagens que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a solução do caso e seu desfecho. Entre os quais, o repórter fotográfico Ronaldo Bernardi, de Zero Hora.
Destacado para registrar o assalto ao supermercado no bairro Partenon, Bernardi, nas fotos tiradas no local, acompanhou Júlio César sendo colocado em uma viatura policial com apenas um ferimento junto à boca. Logo depois, no Hospital de Pronto Socorro, onde operário chegou morto com um tiro no tórax, Bernardi possibilitou com seus registros a descoberta de que havia ocorrido uma execução entre um local e outro.
Também foi ouvido no filme o repórter João Carlos Rodrigues, na época em Zero Hora, que, com a sua apuração dos fatos, foi ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo daquele ano. Além deles, relembram o caso o juiz aposentado Luiz Francisco Correa Barbosa, o sociólogo Edilson Nabarro, o professor Waldemar de Moura Lima, o Pernambuco, o jornalista e irmão de criação de Júlio César, Paulo Ricardo Moraes, o Baiano, e o fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, entre outros.
Na época, o caso foi bastante emblemático. Fazia apenas dois anos que o Brasil voltava a ter um governo civil, e as leis em vigor ainda eram do período da ditadura militar, que durara 21 anos. Naquela época, mesmo quando praticavam crimes contra civis, militares respondiam e eram processados em tribunais próprios.
A morte de Júlio César provocou uma grande mobilização, unindo ativistas dos direitos humanos e do movimento negro e a imprensa, principalmente. Manifestações, protestos e notícias foram fundamentais para a comprovação de que Júlio César era inocente, não tendo participado do assalto, e fora executado.
No documentário, as diretoras e roteiristas também questionam o nome com o qual o crime ficou conhecido, e que deu título ao próprio filme: “Existe homem certo no caso de execuções?”.
– Sem acreditar em coincidências, Marielle Franco foi executada no dia 14. Há 30 anos, Julio César também foi executado em um dia 14. Percebemos o quão ainda é preciso falar, refletir e buscar soluções para essa questão do extermínio da população negra – afirma Camila.
Unindo à morte do operário Júlio César à execução da vereadora Marielle, O Caso do Homem Errado é um filme sobre um crime ocorrido há quase 31 anos, mas com uma temática ainda atual.
O Caso do Homem Errado
De Camila de Moraes
Documentário, Brasil, 2018, 70min.
Estreia hoje no CineBancários, às 19h.
Após a sessão, haverá um debate aberto ao público, com presenças da advogada Karla Meura, da produtora do filme Mariani Ferreira e do major da Brigada Militar Dagoberto Albuquerque da Costa, com a mediação do jornalista Airan Albino.