O Mapa da Violência 2016, produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), demonstrou que, no Brasil, morrem 2,6 vezes mais negros do que brancos quando se trata de vítimas de armas de fogo. Também data do ano passado o relatório da CPI do Senado que investigou assassinatos de jovens e apontou que, a cada ano, 23 mil negros entre 15 e 29 anos são mortos no país.
O tema, discutido por movimentos sociais como um genocídio da população negra no Brasil, é o pano de fundo de um documentário que teve sessão de pré-estreia neste mês em Porto Alegre, e cujo ponto de partida é o assassinato do operário negro Júlio César de Melo Pinto, por policiais militares, há 30 anos – o crime ocorreu no dia 14 de maio de 1987.
A morte de Pinto, que ficou conhecida como "O Caso do Homem Errado", mesmo título do filme, foi desvendada a partir de fotografias feitas pelo repórter fotográfico Ronaldo Bernardi, de Zero Hora. Ele flagrou o momento em que o operário, confundido com um assaltante, foi algemado e colocado em uma viatura da Brigada Militar, na Avenida Bento Gonçalves. Pouco mais de uma hora depois, o mesmo jornalista registraria a chegada do corpo de Pinto no Hospital de Pronto Socorro (HPS). Ele havia sido morto com um tiro na altura do abdômen.
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A investigação que apurou a forma como o operário foi assassinado e que confirmou que ele não era um criminoso foi realizada em meio a uma forte pressão exercida por movimentos sociais e reportagens publicadas na imprensa. Em xeque, a forma de ação da Polícia Militar e, em pauta, um possível racismo no caso.
A diretora de O Caso do Homem Errado, Camila Moraes, 30 anos, tinha apenas um mês de vida quando o operário foi morto. A produtora do documentário, Mariani Ferreira, nem era nascida – hoje ela tem 28 anos. Foi por meio de pesquisas, realizadas a partir de 2014, que elas escreveram o roteiro do documentário, cuja primeira exibição ocorreu no dia 11 deste mês, na Cinemateca Capitólio, na Capital.
– O pai de Camila, o jornalista Paulo Ricardo Moraes, era compadre do Júlio César – conta Mariani.
De acordo com a produtora, a intenção inicial era fazer um curta-metragem. Porém, diante da complexidade do caso e da quantidade de material coletado, sobretudo a partir de entrevistas, decidiram transformá-lo em longa. O filme ainda não tem data para entrar em cartaz no circuito de cinemas.
Feridas ainda não cicatrizaram
Trinta anos depois, as feridas não cicatrizaram em parentes mais próximos da vítima. A mãe de Pinto, Maria Sebastiana de Melo Pinto, não gosta de falar sobre o caso. Para amenizar a dor, segue trabalhando – ela tem 84 anos. A viúva, Juçara Carneiro de Melo Pinto, mesmo três décadas depois, não consegue conter as lágrimas quando observa as fotos do dia do casamento e dos desfiles de Carnaval na escola de samba Garotos da Orgia. Em relação à Brigada Militar, ficou um trauma difícil de ser curado, diz:
– Sei que hoje estamos vivendo dias bem violentos, mas cada vez que vejo brigadianos revistando ou prendendo alguém me vem uma dor e uma dúvida: será que essas pessoas presas não são inocentes?
À época trabalhando como babá, Juçara, então com 24 anos, aproveitou a chegada do marido ao fim da tarde de 14 de maio de 1987 e pediu a ele que posasse com três crianças das quais ela cuidava para uma fotografia. Aquele seria o último retrato que a mulher faria do marido. Pouco depois, sem que Juçara soubesse, o operário foi fotografado por Ronaldo Bernardi. Foi, na verdade, uma sequência de imagens, que o mostra consciente dentro de uma viatura da BM. Essas foram as últimas fotos dele em vida. Nos registros seguintes, feitos pouco mais de uma hora depois pelo mesmo jornalista, o operário aparece morto sobre uma maca, no HPS.
– O que me chamou a atenção foi que havia uma pessoa algemada, sendo colocada com violência na viatura. Os policiais tentaram me afastar. Júlio César tinha uma expressão de horror. Com o carro de ZH, fomos até o HPS. Os PMs apareceram 37 minutos depois. Júlio César estava morto – lembra Bernardi.
Em casa, Juçara percebia a ausência do marido:
– Ele me disse que ia tomar um banho, e eu fui dar uma olhada na minha avó, que morava com a gente. Nem percebi que ele tinha saído de casa – recorda.
O casal morava no bairro Partenon, zona leste de Porto Alegre. A poucos metros da casa deles, na esquina da Bento Gonçalves com a Rua Batista Xavier, ocorria um assalto a um supermercado. Quando a BM chegou, os ladrões ainda estavam no estabelecimento. Houve troca de tiros e, possivelmente por curiosidade, Pinto foi ver o que estava ocorrendo.
No tiroteio, morreu um assaltante, e um PM foi ferido em uma perna. Outro ladrão fez duas crianças reféns, aumentando a tensão. Por fatalidade, Pinto sofreu uma crise epilética nas proximidades do estabelecimento atacado. Caído e sem documentos, foi detido pelos PMs como participante do roubo.
As fotos de Bernardi denunciavam a execução, mas não comprovavam a inocência da vítima.
– Pelo senso comum, bandido bom é bandido morto. E Júlio César tinha o estereótipo de suspeito: negro, pobre e sem documentos – avalia o sociólogo da UFRGS Edilson Nabarro, que acompanhou o caso.
Para a família, Pinto estava desaparecido. Juçara buscou auxílio policial. Recorreu à instituição da qual faziam parte os algozes do marido.
– A Polícia Civil estava em greve, e tive de registrar o desaparecimento na Brigada Militar. Eles sabiam que o Júlio César estava morto, mas não admitiram na hora e ainda tentaram fazer com que eu dissesse que meu marido era assaltante – conta Juçara.
Somente quatro dias depois, o jornalista Paulo Ricardo Moraes, compadre de Pinto, descobriu e identificou o corpo no Instituto Médico Legal.
Caso colaborou na mudança de legislação
As investigações levaram à descoberta do que havia ocorrido. Os PMs haviam desviado a rota entre o local do assalto e o HPS, e assassinado o operário em um terreno baldio, na Avenida Cristiano Fischer, bairro Jardim do Salso. Mas um longo e tortuoso caminho teve de ser percorrido para comprovar tanto a inocência de Pinto quando a culpa dos PMs.
O período era de transição. Havia dois anos que o Brasil saíra da ditadura militar. Em fevereiro daquele ano, fora dado início ao processo de elaboração da nova Constituição, com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, no Congresso Nacional.
Nesse cenário, acentuavam-se os debates políticos e cresciam os movimentos sociais. Entre esses, o Movimento Negro Unificado (MNU). Já o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, com o fim das prisões de cunho político desde os anos 1970, voltava as atenções para os chamados presos comuns. Ambos se aliaram à imprensa na denúncia do caso.
– Júlio César estava no lugar errado e na hora errada, mas Ronaldo Bernardi estava no lugar certo e na hora certa – comenta o sociólogo Edilson Nabarro.
O fotógrafo trata o caso como missão cumprida:
– Depois de 30 anos, entendo que minha ida para aquele local foi algo superior a mim. Se não fossem as fotos, não se teria esclarecido o que aconteceu.
O sociólogo acredita que a cobertura jornalística do caso foi importante para o seu desfecho:
– Não era mais um noticiário policial. A cobertura teve uma abrangência mais social, o que trouxe a opinião pública e os órgãos de direitos humanos para a busca por justiça.
Outra campanha surgida com o caso foi a de transferir as investigações de crimes cometidos por militares contra civis para a Polícia Civil, bem como o julgamento dos casos para a chamada Justiça Comum. Naquela época, qualquer crime cometido por policiais militares era investigado por meio de um Inquérito Policial Militar (IPM) e julgado pela Justiça Militar. No entanto, somente oito anos depois, em 1996, ocorreu a mudança na legislação.
O Caso do Homem Errado foi julgado duas vezes pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado. Na primeira, dois tenentes foram condenados a 14 anos de prisão e dois cabos e quatro soldados, a 12 anos. Na segunda, um dos tenentes foi absolvido. Os condenados foram expulsos da corporação e cumpriram apenas parte de suas penas.
– Crimes por ações da PM contra negros até hoje ocorrem em todo o Brasil. A repercussão e a punição dos culpados foi algo inesperado para aquele período. Sempre que um membro da polícia é punido, é cumprida uma função pedagógica – pondera Nabarro.
O também sociólogo e especialista em segurança pública Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo vê a situação com ceticismo.
– Alguns estudos feitos no Brasil mostram que o componente racial ainda pesa na intervenção policial. A seletividade para as ações das polícias ainda segue um estereótipo: negros, pobres e considerados mal vestidos. A forma de abordagem também costuma ser diferente – argumenta.
A Brigada Militar, por meio de sua assessoria de comunicação social, disse que não se manifestaria sobre o caso. Dois dos brigadianos envolvidos foram localizados, mas enviaram mensagens à reportagem dizendo que não falariam.
Veja sequência de fotos de Ronaldo Bernardi, e um depoimento do fotógrafo:
"É ESSE, É ESSE"
Por Ronaldo Bernardi
Repórter fotográfico de ZH, autor das fotos que denunciaram a execução
Saí da Redação para uma pauta que, em princípio, seria um saque em um supermercado. Chegando ao local, deparei com um assalto com reféns, sons de sirenes e muita correria de policiais.
Chamou-me a atenção quando os PMs passaram com o Júlio César algemado com as mãos para trás e sem qualquer ferimento a bala. Percebi que ele levava muita porrada enquanto era posto na viatura. As pessoas que estavam na volta gritavam: "É esse, é esse", insuflando ainda mais os policiais.
Fotografei o tempo inteiro, cheguei a me jogar sobre o capô, só parando quando acabou o filme – era o tempo das câmeras analógicas.
Quando a viatura saiu, vi que eles dobraram na Avenida Salvador França em direção à Ipiranga. Corri para o carro do jornal e pedi ao motorista que tocasse rápido para o HPS. Ficamos esperando um tempão por lá, até que ouvi um grupo de PMs que estava no setor cirúrgico e parecia comemorar alguma coisa.
Quando eu saía, dois servidores do hospital me perguntaram se eu não queria ver o corpo de um suposto assaltante. Vi que era o mesmo homem que havia sido preso no supermercado. Enquanto eu fotografava, pensei comigo: mataram o cara.