Ivonete Pinto*
O fato é conhecido e mesmo quem não tem os detalhes já assiste ao filme sabendo que um homem, confundido com um assaltante, foi morto por policiais militares. Na sequência dos depoimentos, o novelo vai sendo desenrolado: trata-se de um operário negro, executado longe do local do assalto em que sequer esteve envolvido, e ser negro foi determinante para a execução.
Dos filmes que recuperam acontecimentos semelhantes da crônica policial, um em especial inspira o título deste. O Caso dos Irmãos Naves (1967), com direção de Luis Sergio Person, é uma ficção baseada em fatos reais.
À época do Estado Novo (1937), dois irmãos (brancos) passam de acusadores a réus, sendo torturados inclusive. No entanto, lá houve um julgamento, direito que Júlio César de Melo Pinto não teve.
Quem consegue contar esta história? À pergunta, o documentário responde através da ficha técnica encabeçada por duas mulheres negras: a diretora Camila de Moraes e a roteirista e produtora Mariani Ferreira. É o segundo longa-metragem brasileiro com direção solo de mulher negra a ser lançado comercialmente no país. O primeiro foi Amor Maldito, de Adélia Sampaio, há 34 anos. Por aí se vê o quanto o Brasil ainda precisa caminhar para que a inclusão racial e de gênero seja realidade.
O Caso do Homem Errado é de uma contundência que não nos deixa indiferentes. Apesar de estar vinculado a uma linguagem jornalística, onde preponderam os depoimentos, não é um filme neutro. É assumidamente militante, denuncia, quer fazer pensar. Não ouve o outro lado (os policiais que executaram o operário) e não há a necessidade para tal, pois o julgamento já aconteceu. O que se percebe, é que passadas três décadas, os condenados foram a vítima assassinada, seus familiares e a população negra. O tempo que passou permite também que os entrevistados falem com distanciamento, com racionalidade, porém, não impede que aflore emoções, como a de um personagem chave, o repórter fotográfico Ronaldo Bernardi. Ponto alto do filme – não em função do apelo dramático, mas porque nos leva a refletir –, o citado fotógrafo vai às lágrimas ao lembrar do episódio, demonstrando que a indignação permanece até em quem está acostumado a cobrir violências desta ordem.
Há senões, o que é natural tratando-se de uma estreia na direção e de uma equipe ainda pouco experiente. O documentário, por exemplo, não explicita o fato de que o Brasil de 1987 vivia os respingos da ditadura militar finda há dois anos apenas. Por isso os policiais, através do alto comando, tentaram sem sutilezas manipular a justiça propondo um acordo indecente (conforme depoimento de um ex-juiz). No entanto, esta falta de contextualização referente ao regime militar, que pode prejudicar uma compreensão mais aguda por parte do público jovem, não chega a diminuir a força do filme. Afinal, o que importa pensar é que algo mais profundo e culturalmente enraizado faz a tragédia deste acontecimento, que é o racismo. Pelas estatísticas, ele ainda mata mais do que matava nos anos 80, 90, 2000... Ou seja, filmes como este não são apenas bem-vindos, são urgentes, pois sem denúncia não há conscientização.
* Editora da revista Teorema Crítica de Cinema e docente na graduação em Cinema da UFPel