Por Angela Beatriz S. M. Vianna
Pesquisadora em cinema documentário
Estreia desta semana nos cinemas, No Intenso Agora usa somente imagens de arquivo. Ora são de um filme caseiro que registra uma viagem à China, feita pela mãe do diretor em 1966, ora são públicas, registrando momentos históricos, como maio de 1968 em Paris, a primavera de Praga e o acirramento da ditadura militar no Brasil. O desafio do filme é olhar com acuidade para essas imagens, extraindo delas o máximo que têm para nos dar.
A personagem principal de No Intenso Agora não tem nome próprio. Ao longo do documentário, é chamada de "minha mãe". João Moreira Salles desenvolve a narrativa reforçando o vínculo emocional e afetivo com sua personagem, aproximando-se cada vez mais da figura materna, ao mesmo tempo em que aprofunda sua análise do momento histórico em 1968. Ao intercalar tais imagens, o movimento do filme se assemelha ao cotidiano de uma criança que sai de casa para a escola e volta da escola para a casa. Ela descobre e interpreta o mundo lá fora e volta para casa, ou seja, volta para a mãe. (A criança, não raramente, observa atentamente a própria mãe.) Não custa lembrar que João era uma criança de seis anos em 1968. E vivia em Paris.
Há três camadas sobrepostas nas imagens da China de 1966: a primeira são as imagens em si, a segunda é o olhar da mãe de João e a terceira é o olhar de João sobre a mãe. A rigor, as imagens não são da China de 1966 e sim da viagem que a mãe de João fez à China em 1966. Já nas imagens dos movimentos de 1968 não há camadas sobrepostas. Elas são vistas a partir de uma perspectiva histórica e, ao mesmo tempo, verificam-se os humores das pessoas que ali estavam.
Uma criança, nos seus primeiros meses de vida, enxerga a mãe como extensão de seu corpo. Só depois é que percebe que ela é outra pessoa. Assim, olhar para a própria mãe é sempre olhar também para o seu primeiro outro. O que significa dizer que o olhar do espectador é diferente do olhar de João para ela. Essa personagem não é de todo desconhecida de quem viu Santiago (2007): nesse outro filme do diretor, ela aparece em uma cena e é citada em outras duas. É interessante detalhar a presença da mãe em Santiago para entendê-la em No Intenso Agora.
A cena de Santiago se passa na piscina da casa da família na Gávea, e nela a mãe de João está acompanhada do marido e de três crianças. Uma destas começa a chorar, ela apanha o filho nos braços e o menino segue chorando. Em seguida, alcança o filho para o marido e, nos braços do pai, ele continua chorando, quando finalmente é entregue às babás que o levam dali. O que se observa nessa cena é que a mãe de João compartilhava com o marido o cuidado com os filhos, caso contrário teria se dirigido diretamente às babás. Além disso, ela permanece tranquilamente na piscina enquanto o filho é levado, gesto que revela uma mãe sem culpa, sem a neurose de tentar suprir todas as necessidades do filho.
João menciona em Santiago que sua mãe gostava muito dos arranjos de flores que o mordomo fazia. Daí se extrai outra característica sua: uma pessoa com suficiente sensibilidade a ponto de perceber a beleza simples e efêmera de um arranjo de flores.
Santiago, o mordomo que dá nome ao filme, conta que trabalhou em um dia de folga (que coincidia com a data de seu aniversário), porque a mãe de João solicitou a ele que organizasse um jantar. Emocionado, ele relata que, nesse jantar, ela o chamou na frente dos convidados, apresentou-o como seu mordomo e pediu a todos que, junto a ele, brindassem pelo seu aniversário. Podemos interpretar esse gesto como sendo, no mínimo, dissonante. Uma dentre tantas regras sociais que a burguesia herdou da aristocracia é a que diz respeito ao trato com os criados. Esses têm o dever de ser discretos ao servir, enquanto os patrões mantêm distância de quem os serve. É interessante notar que essa senhora da alta sociedade, sutilmente, cometeu uma pequena transgressão a uma regra da classe social de sua origem.
O objeto de análise do filme é mais centrado nas imagens de maio de 1968 em Paris do que nas imagens de Praga e do Rio da mesma época. É nelas que bem se vê o movimento estudantil, a alegria dos jovens que estavam ali, sua busca por algo novo e sua rápida derrocada. O próprio diretor narra o suicídio de três estudantes, e fica totalmente claro que, para João, o suicídio não comporta adjetivos.
A personagem da mãe, que já havia nos surpreendido em Santiago, faz o mesmo no novo filme. É inusitado o fato de uma mulher da alta sociedade passear com seus amigos na China em 1966. O mais plausível seria ela passear em algum lugar como o Principado de Mônaco ou a Riviera Francesa, e na companhia de sua família, uma vez que se estava nos anos 1960. É possível, assim, que ela estivesse outra vez cometendo uma pequena transgressão.
Em uma cena, a mais bela do filme, tira seus sapatos, sobe no ombro de um amigo e espia sobre o muro, olhando para além do permitido. Sai dali feliz, como quem fez algo proibido. A intensidade do agora pode ser de plena alegria ou de profunda tristeza. O impulso para a vida é sempre acompanhado do impulso para a morte. Parece que andar no limite desses dois impulsos é uma peculiaridade dos transgressores, sejam seus atos pequenas ou grandes, sejam suas manifestações individuais ou coletivas.
Roberto Rossellini dizia que há sempre mais de um final possível para um filme. Discordo, em parte, do mestre italiano. Há raros filmes nos quais um único final é possível, e No Intenso Agora é um deles. A imagem fica colada na retina: aquela pessoa, naquele momento, foi plenamente feliz. Por um instante confundi o sorriso da estudante francesa com o sorriso da mãe de João.