Da euforia à ressaca, da fúria revolucionária ao resignado acomodamento. Ao longo das duas horas de duração de No Intenso Agora, surgem muitas analogias entre a vida íntima e a história universal. O documentário de João Moreira Salles chega aos cinemas 10 anos depois de Santiago, aclamado filme em que o diretor carioca teve como personagem o mordomo de sua família, Santiago Badariotti Merlo (1912 – 1994). Foi no processo de montagem de Santiago que Salles encontrou imagens feitas por sua mãe, Elisa Moreira Salles (1929 – 1988), durante uma viagem à China, em 1966. Os registros flagraram o país em plena Revolução Cultural conduzida por Mao Tsé-tung. A partir dessas imagens, Salles fez uma imersão em outros dois momentos marcantes do século 20: a revolta estudantil de 1968 na França e a Primavera de Praga, quando a invasão da União Soviética apertou o garrote sobre a Tchecoslováquia. A interconexão desses episódios, que passa também pelo Brasil sob a ditadura militar, não é fluida. Seguiu mais um impulso afetivo do que o rigor da análise histórica e política, reconhece Salles em entrevista a GaúchaZH:
– Parte das virtudes do filme, e dos seus defeitos, está no fato de que não se atém a um tema. Tem o afeto, a história política de 1968, a questão política das imagens e a questão de como os mortos se transformam em mártires.
Como foi o processo de realização de No Intenso Agora? Em 2013, você me falou que já tinha uma versão do filme e que ainda não sabia o que fazer com ela.
No final da edição do Santiago, encontrei por acaso esse material da minha mãe. Em 2011, passei a ler não só sobre esse período de 1966 na China, mas também sobre 1968. Imaginei que havia alguma relação, que é um pouco sutil, mas tem a ver com a fagulha inicial do filme. Identifiquei uma alegria, uma comoção diante do mundo, um interesse diante de coisas que, na minha memória, minha mãe foi perdendo ao longo dos anos. Lendo sobre as memórias das pessoas que viveram o 1968 na França, identifiquei o mesmo movimento. Ao voltar para o Brasil, contratei o pesquisador Antonio Venancio e pedi imagens do maio de 1968. Em 2012, entrei na ilha de edição com uma ideia pouco precisa de como transformar minha inquietação em filme. Começou comigo e com a montadora Laís Lifschitz. Durante quase dois anos, organizamos o material dentro da ideia de que nem sempre a gente sabe o que está filmando, e nem sempre sabe o que está vendo. Ver que negros e mulheres, em 1968, nunca estão no centro do quadro e que isso significa alguma coisa. O primeiro corte que mandei para o (montador) Eduardo Escorel era um monstro com mais ou menos cinco horas. O filme nasceu do trabalho de fazer um filme.
No filme, você fala que interpretar imagens é um ato político. Isso é interessante dentro do conceito que se tem do documentário como representação da verdade pura.
Isso é influência de muita gente. O Eduardo Coutinho (1933 – 2014) tinha essas inquietações, de não tomar a imagem como um documento inquestionável. Tem muito da influência do (francês) Chris Marker e do (alemão) Harun Farocki. Como filmam as câmeras oficiais e como filmam as câmeras militantes, e como essas câmeras militantes filmam quando se tornam as câmeras do regime. Isso tudo me interessa.
No Intenso Agora traz registros de tentativas de mudanças que se transformam em frustração. Há uma conexão com o que estamos vivendo hoje. Você concorda?
Não fiz o filme para comentar este momento, mas é fato que está sendo lançado agora e você tem as experiências das primaveras árabes, do movimento Occupy, do Obama que vai para Trump, do projeto do PT que acaba em Temer. Não tem como negar que o mundo se aproximou do filme. O acaso que fez do filme um comentário possível sobre o que se passa hoje no mundo. No percurso que o filme fez fora do Brasil, me chamou a atenção que as perguntas após as sessões caminhavam sempre na direção das inquietações da pessoas em seus países. Na França, evidentemente, falou-se do maio de 1968; em Buenos Aires, falou-se do desmanche do projeto Kirchner; em Tel-Aviv, falou-se de como a esquerda tornou-se irrelevante em Israel e como a direita ocupou todo espaço político; em Chicago só se falou em Occupy, e uma moça turca da plateia falou da experiência dela em 2013 na Turquia, que quase correspondeu à nossa aqui no Brasil. O filme tem essa capacidade de refletir as angústias políticas de quem o assiste, mas não foi feito para isso.
Seu filme tem um segmento que destaca suicídios de pessoas que não superaram a frustração diante de um sentimento de derrota de seus ideais. Mas você não menciona que sua mãe também cometeu suicídio. Privar o público dessa informação não prejudica essa interconexão que você buscou?
É uma pergunta muito boa. Tem gente que acha que prejudica. Eu tive muito pudor, não me senti à vontade para dizer que ela se matou. Acho que está indicado sutilmente. Em nenhum momento eu me senti tentado a dizer isso. É um preço que pago, talvez pelo fato de as pessoas não entenderem bem a conexão entre minha mãe e todo o resto do filme. A conexão, para mim, não está no modo com ela decide terminar a vida dela, mas na ideia de que viveu intensamente um período da vida, ficou nostálgica dessa intensidade e, por nunca mais ter conseguido recuperá-la, foi entristecendo, entristecendo, entristecendo e decidiu tomar a decisão de pôr fim à vida. Mesmo que ela tivesse morrido por outra razão, acho que o filme continuaria a ficar de pé.
Você acredita que No Intenso Agora pode sugerir que a frustração tende a ser uma consequência natural da uma tentativa de mudança?
Não. A pior forma de ilusão é negar a realidade. A gente prefere mitificar o maio de 1968 francês como se não existisse a marcha do De Gaulle, que foi a maior de maio, para reafirmar o status quo. É importante entender que, nesse processo para transformar a sociedade, as vitórias não são totais. Os legados importantes às vezes se manifestam aos poucos. É inegável que maio transformou a sociedade francesa. Do ponto de vista estritamente programático, fracassa porque a garotada ia para a rua derrubar o regime do De Gaulle. Maio de 68 foi derrotado tanto pelo De Gaulle quanto pelo Partido Comunista e pelos sindicatos. A cena que acho mais extraordinária produzida em maio é aquela em que a operária é obrigada a voltar a trabalho e se diz traída pelos sindicalistas ligados ao Partido Comunista. E a ordem de Moscou foi: “Acabem com essa confusão, esses estudantes são perigosos, são anarquistas e não estão ligados com a gente. A França não era da Otan, era um país com política internacional independente e, para a União Soviética, era conveniente ter o De Gaulle à frente. A sensação de vazio se instalou, mas a sociedade francesa, que era ainda mais hierárquica, patriarcal, sem nenhuma abertura para mulheres e imigrantes, mudou. O movimento feminista se desenvolveu, assim como o movimento antirracista e a questão sexual. E ideia de que 2013 não produziu nada (no Brasil) é um equívoco. Produziu muita coisa em várias direções, de que pessoas podem gostar ou não. Acho que o impeachment não teria sido possível sem 2013. Procuradores e juízes ouviram a mensagem. Foram investigar os caras que perderam a conexão com a sociedade brasileira e chegaram à Odebrecht, aos estádios e acabaram chegando ao poder público, ao Cabral, ao PT.
O filme apresenta interessantes conexões de imagens, como os discursos de De Gaulle antes e depois do maio de 1968 e as cenas da Primavera de Praga feitas de forma clandestina e, depois, nas ruas. Como se deu a garimpagem de arquivos?
No caso da Tchecoslováquia, vou encher a bola do pesquisador Antonio Venancio. Ele descobriu um arquivo de filmes amadores produzidos naquele período, com gente que, no dia 21 de agosto de 1968 (invasão da União Soviética, marco da Primavera de Praga), saiu com suas câmeras para produzir evidências do que estava acontecendo com seu país. Assisti a muitos documentários e filmes canônicos sobre o período e não vi nenhuma dessas imagens. É um material original, tendo a achar, até para o tchecos. Foi pesquisa de verdade. No jornalismo, é o trabalho de sola de sapato, é a apuração, é descobrir ouro em um material escondido. O filme recebeu três prêmios no Cinéma du Réel, festival de documentários que acontece em Paris, e um deles foi o prêmio dos arquivistas. A justificativa desse prêmio foi: “Nós não conhecíamos boa parte desse material”. Em relação ao De Gaulle, li uma referência a esse discurso de 31 de dezembro 1967, em que ele saudava o Ano Novo e dizia que 1968 seria um ano muito bom, muito pacífico, sem nenhuma nuvem no horizonte, que a França estava em paz, os jovens queriam trabalho, queriam formar famílias burguesas. Viu-se o que se viu. Em maio, a França estava parada, praticamente em convulsão. O Venancio encontrou o discurso. À medida que a gente editava o filme, quando o De Gaulle retoma o poder, eu e Laís encontramos no YouTube o discurso de dezembro de 1968. É um baita discurso. Ele coloca o dedo na ferida, aponta o dilema da geração de 68, referindo-se a uma sociedade materialista, que se define pelo sucesso da carreira, que não tem mais os valores filosóficos da Revolução Francesa, fala que o mundo estava mais distante dos valores do Iluminismo.
A marcha de De Gaulle se parece com as de 2016 que antecederam o impeachament da presidente Dilma no Brasil.
A passeata do Champs-Élysées é a passeata verde e amarela, sem dúvida. Em 2013, teve um movimento mais horizontal do que vertical, uma certa suspeição de que toda mediação política é contaminada por tendências opressivas. Você não acredita mais em partido político, em sindicato, acredita em você mesmo e no seu cartazinho. Tem perfume anarquista que produz consequências positivas e negativas. As positivas são os movimentos de afirmação de identidade negra, a questão feminista, os movimentos de periferia, o direito à fala sem intermediação. Numa das entrevistas que a gente fez em torno do filme (material complementar disponível aqui), uma militante de 2013 diz que ali se “destampou tudo”, todo mundo começou a falar. Os reacionários também começaram a falar. Quem era a favor do golpe, a favor da tortura, quem acha que bandido bom é bandido morto, quem sempre teve constrangimento de falar isso em voz baixa agora está falando em voz alta.
NO INTENSO AGORA
De João Moreira Salles
Documentário, Brasil, 2017, 127 min, 12 anos.
Em cartaz no Espaço Itaú 3, com sessão às 19h.