Depois de projetos em parceria com Walter Salles (Terra Estrangeira, de 1995; Linha de Passe, de 2008) e Felipe Hirsch (Insolação, de 2009), Daniela Thomas dá seu primeiro voo solo na direção de um longa-metragem com Vazante – nada menos do que o filme-polêmica da temporada no cinema nacional.
Exibido em Berlim e no Festival do Rio, o longa foi muito contestado por alguns críticos no debate pós-sessão no Festival de Brasília, em setembro, polêmica que se estendeu em entrevistas, artigos na imprensa e manifestações nas redes sociais, inclusive com um recuo da diretora, que, acossada, chegou a se dizer arrependida de algumas escolhas que fez – para, dias depois, voltar atrás.
Vazante é um filme forte e visualmente deslumbrante, que precisa do tempo e de algum distanciamento crítico para fugir das leituras apressadas – já houve quem o chamasse de "uma nova Sinhá Moça", em referência à telenovela global de Benedito Ruy Barbosa, de 1986. Antes, no entanto, é preciso que seja visto. E na tela grande, para que suas belas imagens sejam fruídas adequadamente (em Porto Alegre, os cinemas que o exibem, a partir desta quinta-feira, 9/11, são o Cinespaço Wallig e o Espaço Itaú).
A trama se passa em 1821, na região identificada, logo no primeiro plano, como a Serra Diamantina, em Minas Gerais. O tema parece ser a escravidão, mas o que move o protagonista, um tropeiro de origem portuguesa (Adriano Carvalho), é a dor da perda da mulher e do filho, em um parto malsucedido.
Não que fosse necessário um momento extremo para revelar o quanto aquelas relações sociais estavam contaminadas: um número significativo de personagens e subtramas (na casa grande, na senzala e na interação entre ambas) vai se apresentando aos poucos ao espectador, conformando uma estrutura narrativa que, de fato, lembra os folhetins como Sinhá Moça, e que, o erro da cineasta, só é realmente aprofundada em suas nuances quando seu olhar se detém sobre os brancos.
As imagens dos negros, em parte, ilustram espécies de vinhetas que separam os blocos nos quais o roteiro é dividido. Nesses entreatos de função dramática pouco significativa, seus corpos à mostra (e as almas escondidas) reforçam a ideia de estilização – o que fica grave com as revelações da metade final, que indicam que um jovem escravo (Vinicius dos Anjos) estava no primeiro plano dos acontecimentos relatados anteriormente.
Sobre esses acontecimentos, talvez seja melhor apenas dar uma pista genérica: Daniela Thomas está falando de uma promiscuidade que perpassa as relações de poder entre homens e mulheres à época, e que faz com que os senhores proprietários das terras possam usá-las, independentemente da idade que têm – a protagonista feminina é uma adolescente interpretada por Luana Nastas, talvez o principal destaque do elenco que ainda tem Sandra Corveloni, Juliana Carneiro da Cunha, Fabrício Boliveira, Jai Baptista e Roberto Audio, entre outros.
Há muito mais sendo abordado, incluindo tensões sobre as posses e os passos dos escravos que fogem – tudo de maneira rápida, como se a intenção fosse dar um panorama da vida naquele recorte de tempo e lugar. Nesse sentido, Vazante é bem-sucedido, embora alguns desses núcleos pudessem ter sido melhor resolvidos ao final.
No fundo, esse tipo de contradição perpassa todo o filme. É o caso de se perguntar, por exemplo, se o registro quase expressionista de alguns atores não está além do que certos diálogos pedem. E, ainda, a que servem as impressionantes imagens em preto-e-branco do fotógrafo Inti Biones, que consegue enorme profundidade e definição graças ao uso de um sem-fim de tonalidades de cinza: esses planos exaltam ou estilizam as pessoas que vivem naquela sociedade doente?
As respostas estão sempre nos filmes, muito além, inclusive, das intenções expressas por seus realizadores em debates, entrevistas e artigos publicados na imprensa. Mas é o público que deve alcançá-las.
Vazante
De Daniela Thomas
Drama, Brasil, 2017, 107min.
Estreia nesta quinta-feira (9/11) no circuito de cinemas.
Em Porto Alegre, o filme pode ser visto no Cinespaço Wallig e no Espaço Itaú.
Cotação: regular.