Vocês já viram o Homem Invisível? Eu já. Três vezes. E a cada vez fecho os olhos para os furos de roteiro desse filme lançado no ano passado nos cinemas (lembram desse lugar?) e hoje disponível no streaming (Telecine, Apple TV, Now, Google Play e YouTube). Prefiro ficar admirando a transformação do personagem.
Mas não estou falando dos efeitos visuais. Eu me refiro à transformação sofrida pela própria história.
O Homem Invisível é um dos filhos eternos paridos pela literatura fantástica do século 19 e depois vitaminados pelo cinema dos anos 1930. Todos permanecem entre nós porque espelham dilemas, pesadelos e pulsões que atravessam gerações. Frankenstein nos alerta sobre os perigos de brincar de Deus — o debate sobre limites da ciência segue atual em tempos de edição do DNA. O Médico e o Monstro sintetiza a dualidade humana — todos temos um lado obscuro, não? Drácula não oferece apenas uma metáfora sobre a insaciabilidade do desejo sexual — os vampiros que sugam sangue também podem ser lidos como a elite que explora os trabalhadores. O Homem Invisível também pode, com o perdão da piada infame, ser visto de várias maneiras.
Aliás, essa é uma característica das histórias de terror: elas se vestem conforme o figurino da época. Peguem os zumbis, por exemplo. Já foram usados em alegorias sobre as minorias vítimas de intolerância e preconceito; em críticas ao consumismo e ao militarismo; como símbolos da desigualdade social, tanto no âmbito das cidades quanto na geopolítica mundial; como produto de nosso descaso com o natureza ou com a saúde; e como consequência das circunstâncias (políticas, econômicas, sanitárias etc.) que nos tornam irreconhecíveis e irreconciliáveis uns aos outros.
Criado em 1897 pelo escritor H.G. Wells, o Homem Invisível já nasceu lidando com temas grandes: ambição, solidão, incompreensão. Nos seus quase 125 anos de vida, ganhou abordagens em tom de comédia, mas no fundo é um personagem sinistro ou triste, um veículo para histórias sobre a intoxicação pelo poder e pela impunidade, sobre como a sociedade pode tornar invisíveis algumas pessoas.
Na sua mais recente, hum, encarnação, o Homem Invisível opera um dos elementos clássicos associados ao personagem, o do voyeurismo — marca identitária do próprio espectador de um filme. E o diretor Leigh Whannell acaba nos fazendo cúmplices do terror, graças ao modo como movimenta a câmera e alterna o ponto de vista das cenas.
Mas o que realmente distingue o seu Homem Invisível dos anteriores — comprovando a longevidade e a capacidade de adaptação do personagem — é que ele passa a simbolizar os relacionamentos tóxicos.
O protagonismo nem é do cientista que descobre um jeito de alcançar a invisibilidade, mas da sua esposa (interpretada pela ótima atriz Elisabeth Moss): ela também foi apagada, só que não por vontade própria.
— Ele controlava o que eu vestia, o que eu comia, como eu caminhava, até o que eu pensava — desabafa a certa altura, depois de fugir.
Traumatizada, a mulher começa a enxergar o marido em qualquer vulto masculino. Afinal, um homem invisível pode estar em qualquer lugar. E um homem abusivo está em todo lugar. Mesmo depois de morto, segue projetando sua sombra.
Quando coisas estranhas começam a acontecer, ela passa a desconfiar de que o sujeito voltou a atormentá-la, a ameaçá-la, a agredi-la, a sabotá-la. Ela grita, mas ninguém acredita. Sua sanidade é posta em xeque:
— É isso o que ele faz: ele me faz sentir que eu sou a louca da relação!
Aí está um Homem Invisível que, infelizmente, muitas mulheres poderão reconhecer até de olhos fechados.