No livro 50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho, lançado neste ano pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, a ACCIRS, Roger Lerina definiu A Festa de Margarette (2002) como um óvni: "Mesmo que não seja uma experiência única, desde que o cinema aprendeu a falar, no final dos anos 1920, poucos títulos buscaram emular na tela os primórdios dessa arte de sombras elétricas — uma das produções mais recentes a flertar com essa nostalgia foi O Artista (2011), de Michel Hazanavicius. Mas a aventura do passo-fundense Renato Falcão é mais radical do que a da oscarizada comédia romântica francesa: A Festa de Margarette prescinde inclusive das cartelas com textos e diálogos, usuais nos filmes mudos".
Como um legítimo objeto voador não identificado, A Festa de Margarette não pode ser visto por aí: está indisponível nas plataformas de streaming. Vive na memória — ou nos sonhos — de quem viu o filme lançado em julho de 2002. Virou, literalmente, peça de museu: foi incorporado ao acervo do MoMa, em Nova York. (Nos Estados Unidos, também pode ser encontrado em DVD e para aluguel no catálogo do Amazon Prime Video.)
No seu primeiro e até agora único longa-metragem, Renato Falcão fez uma celebração de Charlie Chaplin (1889-1977), Sergei Eisenstein (1898-1948) e Federico Fellini (1920-1993). A Festa de Margarette foi rodado em preto e branco, sem diálogos e a 18 quadros por segundo (como na época do cinema mudo de Carlitos), se apoia na teoria da montagem (elaborada pelo mestre russo de O Encouraçado Potemkin) e narra uma história em que a fantasia se mistura à realidade (como nas obras do cineasta italiano de Amarcord).
Trata-se de uma comédia dramática sobre o sonho do metalúrgico Pedro (Hique Gomez, hipnotizante), que divide um barraco com outra família: dar uma grande festa de aniversário para a mulher, Margarette (Ilana Kaplan). Demitido, ele engana a esposa, os filhos e a sogra desconfiada (Carmem Silva) com um crachá de gerente de vendas que achou no chão. Daí em diante, nem Pedro, nem o público conseguem mais distinguir o que é devaneio do que é verdade.
O longa foi filmado em julho e agosto de 2000 em Porto Alegre e Gravataí, mas só quem é daqui reconhece locais como as escadarias do Arroio Dilúvio, a Praça XV dos lambe-lambes, os prédios da UFRGS no campus próximo ao Parque da Redenção. (A propósito, esse apagamento do nome Porto Alegre tornou-se típico nas obras do cineasta Jorge Furtado.) É que, para Falcão, o filme poderia se passar em qualquer grande cidade.
— Mas um cara de Nova York escreveu que se passa no sertão brasileiro! — espantou-se o diretor quando eu o entrevistei em 2002. — Fora do Brasil, o que não é Rio ou São Paulo vira Nordeste.
Como seu herói, o diretor enfrentou a falta de dinheiro para fazer A Festa de Margarette. Ele tentou, mas não obteve um centavo dos cofres estatais. Mais por falta de recursos do que por vontade, acumulou as funções de diretor de fotografia e montador. Com grana própria e dos amigos — além da inestimável dedicação dos atores, que atuaram sem cachê —, conseguiu fechar o orçamento em cerca de R$ 350 mil.
— A produção independente permitiu a ousadia de usar uma estética antiga para contar uma história contemporânea e muito brasileira — comentou.
Curiosamente, em sua gênese A Festa de Margarette não era mudo. A trama surgiu de um sonho. Só ao desenvolvê-la Falcão percebeu que não tinha diálogos, talvez como reflexo de seu trabalho como diretor de fotografia (entre seus trabalhos mais recentes, estão a animação O Touro Ferdinando, de 2017, o romance Verona, de 2021, e a distopia Distrito 666, de 2022).
Chaplin se fez presente o tempo todo. Amigo de Falcão havia 20 anos, Hique Gomez já citava tipos como Carlitos em Tangos & Tragédias. Como o gênio que insistia em filmes mudos mesmo na era do cinema sonoro, o diretor penou para criar soluções que dispensassem as palavras (na sequência da demissão de Pedro, utiliza slides). A cena em que o protagonista se atrapalha na oficina mecânica lembra Tempos Modernos (1936). Quando ele rege as crianças numa orquestra de talheres, O Garoto (1921) vem à cabeça. É chapliniana também sua fuga de dois policiais engraçadíssimos (Lauro Ramalho e Rogério Beretta).
Nas fantasias de Pedro, é Fellini se faz presente. No começo, a música evidencia os delírios do personagem, no desejo de viver o glamour que todos veem na TV mas a que poucos têm acesso. Depois, tudo se confunde. Será que Pedro ganhou uma bolada de dinheiro? Ele viu um desfile de moda? O dono do boteco onde sorve sua canha e pendura as contas faz parte de uma conspiração?
O comovente final deixa pistas, mas, à época da estreia de A Festa de Margarette, o diretor Renato Falcão confessou:
— Discuto até hoje com minha esposa sobre o que é real e o que é delírio.
Torça para quem um dia você também possa se fazer essas questões.