Foi filmado em Porto Alegre e dirigido por dois porto-alegrenses — Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo — o primeiro longa-metragem produzido no Brasil pelo Paramount+, Vai Dar Nada (2022), disponível a partir desta quarta-feira (18) na plataforma de streaming.
Mas é uma Porto Alegre sem nome, reconhecível — pela cor dos táxis, pela vista da orla do Guaíba, por avenidas e ruas do Centro e por locações como o Bar Ocidente — talvez apenas por moradores da cidade. Também não é uma Porto Alegre falada: os principais personagens são interpretados pelos fluminenses Cauê Campos (que fez o Capim em sete temporadas do infantil D.P.A., os Detetives do Prédio Azul), Rafael Infante (do humorístico Porta dos Fundos), Kizi Vaz (da novela Rock Story e da série Ilha de Ferro) e Fernanda Teixeira (egressa do teatro e estreante em filmes), pela paranaense Katiuscia Canoro (a Lady Kate e a Kate Lucia de Zorra Total) e pela baiana Jéssica Barbosa (revelada em Besouro, de 2009, e estrela feminina de O Pai da Rita, que estreia nesta quinta nos cinemas). Todos mantêm os seus sotaques, que se misturam aos de coadjuvantes porto-alegrenses de nascimento (Nicolas Vargas e Nelson Diniz) ou por adoção (o cearense Heinz Limaverde).
Esse apagamento é proposital — visa tornar o lugar uma grande cidade qualquer brasileira — e remete a filmes anteriores de Furtado, O Homem que Copiava (2003) e Meu Tio Matou um Cara (2004), nos quais o diretor bagunçava a geografia da Capital: no primeiro, o 4º Distrito "incorporou" endereços do Bom Fim e da Cidade Baixa, no segundo, o ônibus Anita passa na frente de um presídio longínquo.
Escrito por Furtado em parceria com o pernambucano Guel Arraes (diretor de O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro), o roteiro de Vai Dar Nada guarda outras semelhanças com as duas obras citadas. A exemplo de André, o operador de xerox encarnado por Lázaro Ramos em O Homem que Copiava, e de Duca, o adolescente vivido por Darlan Cunha em Meu Tio Matou um Cara, o protagonista é um jovem negro — Kelson, papel com o qual Cauê Campos exercita o seu carisma. Novamente, a história mistura humor, romance, trama policial, comentário social e personagens de moral no mínimo duvidosa.
A maioria mora na periferia, aqui um cenário pautado pelo otimismo (daí a expressão que batiza o filme, "Vai dar nada") e não manchado pela violência — ainda que haja um bandido perigoso, o Brasilit (Heinz Limaverde). Em entrevistas, Arraes contou que a ideia foi "pegar o subgênero favela movie, criado desde Cidade de Deus (2002), e fazer uma comédia".
Kelson, por exemplo, divide-se entre o emprego como pintor na mecânica de Fernando (Rafael Infante), especializada em adulterar e vender veículos roubados, e a atuação no crime, tendo como comparsa Edmundo (Nicolas Vargas).
— Não trabalho com assalto, só com furto — Kelson frisa, para limpar um pouco da sua barra junto à garota que corteja, Neide (Fernanda Teixeira, que, com o perdão do trocadilho, rouba as cenas graças ao jeito direto e malicioso de sua personagem).
Os golpes na oficina contam com a colaboração de uma policial, Suzi (Katiuscia Canoro), que por sua vez é chefiada por um delegado (Nelson Diniz) mais interessado em corridas de cavalos do que em lidar com a burocracia do ofício.
— Não acredito em nenhuma palavra de vocês — ele diz a dois personagens que querem reaver uma moto apreendida. — Mas acontece que o depósito tá cheio, minha mesa tá cheia e meu páreo corre daqui a cinco minutos.
A comparação entre os títulos dos três filmes e o número de atores escalados permitem vislumbrar uma diferença fundamental. Kelson não tem o protagonismo do homem que copiava ou do sobrinho de um suposto assassino, tampouco será vetor de discussões morais. Ao redor dele, giram outros tipos, como alguns já citados, e correm subtramas. Fernando é casado — ou melhor, tem "união estável", enfatiza — com Suzi, mas paquera a estudante de Direito Rebeca (Jéssica Barbosa). Ela é irmã de Kelson, a quem cobra posturas corretas — mas incoerentemente dá muita trela ao dono de oficina nitidamente safado —, e estagia no escritório da advogada Márcia (Kizi Vaz). Esta, por sua vez, nutre uma paixão secreta pela assistente. E nessa ciranda amorosa ainda haverá espaço para Kelson arrastando asa para cima de Suzi.
A reunião de todos esses elementos — a Porto Alegre que não se assume como Porto Alegre, a estética edulcorada, o elenco inchado, a valorização do texto e da palavra em detrimento do desenvolvimento e da coerência dos personagens, a abordagem superficial da contravenção como estratégia de sobrevivência — faz de Vai Dar em Nada um filme artificial, inodoro, excessivo, genérico e inofensivo. Vale como comédia ligeira, embora nem seja tão ligeira — seus 100 minutos parecem durar mais por causa da quantidade de subtramas —, vale pelas interações de Cauê Campos e Fernanda Teixeira, genuínas e engraçadas, e vale por algumas piadas sobre as leis brasileiras e suas brechas (não à toa, Jorge Furtado vem brincando que é "o melhor filme sobre DPVAT", um seguro obrigatório para a cobertura de danos causados em acidentes de trânsito).