Em sua nova fase, agora na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, a Sessão Plataforma — projeto dedicado a exibir filmes recentes, inéditos no Brasil e sem previsão de estreia — vem destacando cineastas asiáticos. Realizadora do documentário Uma Noite Sem Saber Nada (2021), cartaz deste sábado (2), às 19h, a indiana Payal Kapadia sucede o tailandês Apichatpong Weerasethakul, autor de Memória (2021), apresentado em maio, e o iraniano Shahram Mokri, de Crime Culposo (2020), título de julho. Os ingressos custam R$ 8.
O preço é irrisório diante da recompensa. Vencedor do prêmio de melhor documentário no Festival de Cannes do ano passado, Uma Noite Sem Saber Nada (A Night of Knowing Nothing) é uma experiência cinematográfica imperdível. Um filme imersivo e hipnotizante, particular e universal, poético e fantasmagórico, romântico e político, onírico e urgente, belo e revoltante.
O excesso de adjetivos tem um objetivo: convencê-lo a vencer qualquer tipo de preconceito — contra filmes indianos, contra documentários, contra obras em preto e branco, contra cinema de calçada, contra ir ao Centro.
Desde as primeiras cenas, Uma Noite Sem Saber Nada mostra-se uma obra muito singular. Um letreiro nos avisa que, no quarto de um albergue no Film & Television Institute of India (FTII), foi encontrada uma caixa com vários itens: recortes de jornais, flores, secas, cartões de memória e caras escritas por uma aluna identificada apenas pela letra L. A seguir, em imagens nuançadas em preto e branco, vemos o que parece ser uma festa, com um filme sendo projetado em uma tela ao fundo. Corpos silhuetados balançam ao som de uma música que não podemos ouvir. O que escutamos é a leitura, pela voz um tanto abafada e fria da atriz Bhumisuta Das, de uma dessas missivas — que começam como cartas de amor e saudade, mas gradativamente poderão ser entendidas como um lamento político, uma luta política, um luto político.
A melancólica narração em off e a fantasmagórica fotografia (assinada por Ranabir Das, também editor do longa-metragem de 99 minutos) remetem a um documentário brasileiro: Elena (2012, em cartaz na Netflix), de Petra Costa, uma contemporânea de Kapadia (tem 38 anos, dois a mais do que a indiana). É outro título que emprega uma inventividade formal para vasculhar memórias afetivas, tentando refazer os passos que levaram a um colapso. A diferença é que a cineasta de Belo Horizonte foca em uma personagem só, a sua irmã mais velha, enquanto a diretora nascida em Bombaim retrata um drama coletivo.
Não demora a pintar uma conexão de Uma Noite Sem Saber Nada com outro documentário, bem mais recente e muito mais próximo — geográfica e tematicamente. Indicado ao Oscar e disponível no NOW e para alugar em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play, Escrevendo com Fogo (2021) pode servir como um preâmbulo da Sessão Plataforma. Ali, os diretores Rintu Thomas e Sushmit Ghosh explicam o rígido e cruel sistema de castas da Índia. Surgida há mais de 3,5 mil anos, a estratificação social divide a população nesta ordem: brâmanes (sacerdotes e letrados), que nasceram da cabeça do deus Brahma; xátrias (guerreiros), que nasceram dos braços; vaixás (comerciantes), que nasceram das pernas; e sudras (servos: camponeses, artesãos e operários), que nasceram dos pés. À margem, sequer considerados como casta nessa hierarquia, estão os dalits, que vieram da poeira debaixo do pé da divindade hindu. São os párias, os impuros, os intocáveis.
Enquanto Escrevendo com Fogo retrata como jornalistas dalits tentam combater a cultura do estupro ao mesmo tempo em que lidam com o fundamentalismo hindu — que é respaldado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, do partido nacionalista BJP, eleito em 2014 e reeleito em 2019 —, Uma Noite Sem Saber Nada foca nas dificuldades impostas a estudantes dessa minoria social e na repressão aos universitários de modo geral.
Como um contraste ao sufocamento do movimento estudantil pelo Estado, Payal Kapadia permite-se soltar de amarras cinematográficas. Seu documentário recupera agressões covardes gravadas com câmeras de segurança e traz cenas de protestos nos quais os alunos acrescentam os nomes de dois cineasta russos a um célebre slogan: "Eisenstein, Pudovkin, we shall fight, we shall win!". Mas também lança mão de desenhos, de momentos contemplativos (um céu estrelado, o portão de entrada do FTII), de filmes em super-8 aparentemente desconectados da narrativa central.
Aliás, essa é uma marca de Uma Noite Sem Saber Nada. Como se fosse uma carta apaixonada pelo cinema — tanto por seu caráter de testemunho histórico quanto por seu poder de transformação — e pelo que Sergei Eisenstein, diretor de O Encouraçado Potemkin (1925), e Vsevolod Pudovkin, realizador de A Mãe (1926), ensinaram sobre montagem (e usando uma fotografia que alude à desses títulos), Kapadia, por um lado, busca valorizar a força do coletivo e a resiliência do indivíduo; por outro, surpreende o tempo inteiro com as justaposições de som e imagem. O resultado é tão intrigante quanto fascinante, por possibilitar ao espectador a oportunidade de criar suas próprias conexões, descobrir intenções, experienciar emoções. Vá e veja.