Pode pesquisar: em muitas das listas com os melhores filmes de todos os tempos, O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972) — cartaz do Domingo Maior deste fim de semana, na RBS TV — vai aparecer nas primeiras posições. Às vezes, surgirá no topo do ranking, como naquele elaborado pela revista Hollywood Reporter em 2014, junto a 2.120 membros da indústria cinematográfica. Ou no da publicação japonesa Kinema Jumpo, que, em 2009, perguntou a 114 críticos e profissionais qual era o grande título estrangeiro. O capítulo inicial da saga da família Corleone também liderou votações populares realizadas pela Time Out (em 1998), pela Entertainment Weekly (1999) e pela Empire (2017).
Em exibição a partir das 23h40min deste domingo (3), O Poderoso Chefão completou, no dia 14 de março, 50 anos de sua primeira exibição, no cinema Loew's State Theatre, em Nova York. Por coincidência, uma de suas cenas mais emblemáticas ocorre ao redor do 50º minuto do filme, quando os capangas Clemenza, interpretado por Richard S. Castellano (1933-1988) e Rocco, vivido por Tom Rosqui (1928-1991), entram em um carro com Paulie (Johnny Martino) para executá-lo. Um pouco antes, a esposa de Clemenza alertara o marido: "Não se esqueça dos cannoli!". Cannoli é uma sobremesa siciliana (é claro), uma massa doce frita, em formato de tubo e recheada com creme de ricota.
A bordo do automóvel, o trio se desloca até um descampado, fora da cidade de Nova York — ao fundo, vê-se a Estátua da Liberdade. Ali, Clemenza pede para parar, pois precisa tirar “água do joelho”. Então, três disparos são efetuados por Rocco na cabeça de Paulie. Quando o matador sai do carro, Clemenza diz a célebre frase (que, mais tarde, o diretor Francis Ford Coppola reconheceu como um brilhante improviso de Castellano):
— Leave the gun, take the cannoli (em português, "Deixe a arma, pegue os cannoli").
Essa é uma das tantas sequências memoráveis de O Poderoso Chefão, que recentemente foi relançado nos cinemas com uma edição remasterizada em alta definição (4k UHD). Realizada ao longo de três anos, a restauração também se estendeu às partes II (de 1974) e III (de 1990) e foi supervisionada pelo próprio Coppola, 83 anos, que no final de 2020 apresentou uma nova versão para a terceira parte. A exemplo do que fizera com Apocalypse Now (1979), remontado em 2001 (Apocalypse Now Redux) e em 2019 (Apocalypse Now: Final Cut), em O Poderoso Chefão — O Desfecho: A Morte de Michael Corleone o diretor reposicionou as cenas. Trouxe um começo e um final diferentes. Em uma das principais mudanças, uma sequência que surgia quando já haviam sido transcorridos 40 minutos do filme anterior, agora aparece no início, para destacar o ponto central da trama: a relação insidiosa entre o poder da Igreja e o dinheiro corrompido.
Também saiu uma nova edição da trilogia em DVD/Blu-ray, com extras inéditos. Um dos tesouros é o filme em 8mm que, com cerca de 90 minutos de duração, documenta as filmagens realizadas em 1971 na casa da família Norton, em Staten Island, que serviu de mansão dos mafiosos. Em Full Circle: Preserving The Godfather, os arquivistas da Paramount Pictures detalham o processo de restauração e mostram as várias encarnações do épico, à medida que as tecnologias de imagem e áudio evoluíam. Capturing the Corleones traz a perspectiva do fotojornalista Steve Schapiro (1934-2022), que compartilha suas memórias como testemunha da produção.
Bastidores turbulentos
Os festejos do cinquentenário incluem a minissérie The Offer, cujo título alude a uma das mais célebres frases da trilogia: "I'm gonna make him an offer he can't refuse" (Eu vou fazer uma proposta que ele não poderá recusar). Em cartaz na plataforma de streaming Paramount+, os 10 episódios têm como principal roteirista o veterano Michael Tolkin, 71 anos, que disputou o Oscar de script adaptado por O Jogador (1992), de Robert Altman, e o Emmy por Escape at Dannemora (2018).
The Offer conta os bastidores de O Poderoso Chefão pelos olhos do produtor Albert Ruddy, interpretado por Miles Teller (o Rooster de Top Gun: Maverick). Como narrou o jornalista Peter Biskind no livro Easy Riders, Raging Bulls: Como a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll Salvou Hollywood (1998), é uma história marcada pela desconfiança (os filmes sobre mafiosos não estavam em alta na época, e Francis Ford Coppola não era um nome forte dentro da Paramount) e pelas brigas do cineasta com o produtor Robert Evans e o diretor de fotografia Gordon Willis. O estúdio queria demitir o cineasta, que a certa altura, tamanho o caos na produção, precisou se esconder no banheiro. Havia pressão externa também: por entenderem que receberiam um tratamento pejorativo e estereotipado, italianos e descendentes de imigrantes protestaram contra as filmagens em Nova York.
O elenco de The Offer traz Justin Chambers como Marlon Brando, Anthony Ippolito como Al Pacino, Dan Fogler como Coppola, Patrick Gallo como Mario Puzo, Matthew Goode como Bob Evans, Juno Temple como a agente Bettye McCartt e Giovanni Ribisi como o mafioso Joe Colombo.
A vida imita a arte
O Poderoso Chefão é baseado no romance escrito por Mario Puzo (1920-1999) e publicado em 1969. Com quase três horas, a história começa logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, e foca na família Corleone: Vito (Marlon Brando), o patriarca, Sonny (James Caan), o filho esquentado, o caçula Michael (Al Pacino), Connie (Talie Shire) e Fredo (John Cazale), que não é forte como Sonny nem inteligente como Michael. Tom Hagen (Robert Duvall), o consigliere, é um informal irmão adotivo. Após uma desavença com os Sollozzo e os Tattaglia, Vito sofre um atentado. A partir daí, acompanhamos a transformação de Michael, um militar considerado "civil" no submundo do crime, em um novo poderoso chefão da máfia.
Por falar em transformar, o filme contribuiu para mudar a maneira como os estadunidenses passaram a retratar o caldeirão étnico que compõe o país, como contou Tom Santopietro no livro The Godfather Effect (2012). E, ironicamente, O Poderoso Chefão virou um paradigma para os próprios mafiosos. Em entrevista ao repórter Carlos André Moreira, em ZH, por ocasião dos 40 anos da obra, a jornalista e escritora alemã Petra Reski, autora de Máfia: Padrinhos, Pizzaria e Falsos Padres (2008), "um dos mais completos estudos recentes sobre a influência nefasta do crime organizado", comentou:
— Para a máfia, é muito importante ser considerada como uma organização com valores a preservar, caso contrário, não iria encontrar apoio na população local. Por isso, a máfia adorou O Poderoso Chefão, que a ajudou a espalhar uma imagem generalizada de um tipo de organização arcaica, baseada em valores arcaicos. A máfia sabia da necessidade de construir uma imagem baseada em valores desde o princípio, quando decidiu copiar (e perverter) as regras da Igreja Católica: o homem precisa de algo em que acreditar. Mas o único valor real em que a máfia realmente acredita é a sobrevivência da própria máfia, a qualquer custo. Eles sempre mataram crianças e mulheres.
"Uma declaração", prossegue Moreira , "que Peter Biskind repete em outros termos":
— Acho que a realidade é que a máfia não era de fato parecida com aquilo que é visto no filme. Na verdade, os próprios mafiosos frequentemente se voltaram para Hollywood, para os filmes que os romantizaram, em busca de parâmetros de como se vestir ou de como se comportar.
A trilogia em números
Com um custo de US$ 6 milhões, O Poderoso Chefão tornou-se um tremendo sucesso de bilheteria, arrecadando US$ 246,1 milhões nas bilheterias. Ganhou três Oscar — melhor filme, ator (Marlon Branco) e roteiro adaptado (por Puzo e Coppola) — e concorreu em outras nove categorias, incluindo a tripla indicação de Al Pacino, James Caan e Robert Duvall a ator coadjuvante. Pacino não compareceu à cerimônia da Academia de Hollywood. Foi um protesto, por entender que, com mais tempo de cena do que Brando, deveria ter sido ele a disputar o prêmio de melhor ator.
A indicação à estatueta dessa categoria veio em O Poderoso Chefão: Parte II (1974), mas Pacino perdeu para Art Carney, de Harry & Tonto. De toda forma, o segundo segmento da trilogia, que intercala a infância e a juventude de Vito Corleone, nas primeiras décadas do século 20, com as tentativas de Michael para expandir os negócios da família para Las Vegas e Havana, nos anos 1950, é o mais bem-sucedido no Oscar. Foram 11 indicações e seis troféus: melhor filme, direção, direção, ator coadjuvante (Robert De Niro, o jovem Vito), roteiro adaptado, direção de arte e música original. A essa altura, Coppola já era um nome forte, tanto é que a Parte II competiu na categoria de melhor filme com outro título do cineasta, A Conversação (1974), também indicado aos prêmios de roteiro original e som.
A Parte III, que começa em 1979 e explora a relação da máfia com o Vaticano, não ganhou Oscar. Mas concorreu a sete — como melhor filme, diretor e ator coadjuvante (Andy Garcia) —, ajudando a tornar O Poderoso Chefão a trilogia recordista em indicações, com 29. A marca acabaria ultrapassada por O Senhor dos Anéis (2001-2003), que recebeu 30 e conquistou 17.
Os números de dentro dos filmes também são grandiosos. Na mesma reportagem de ZH que marcou os 40 anos de O Poderoso Chefão, o repórter Gustavo Brigatti assistiu à trilogia para compilar algumas estatísticas. Por exemplo, a música tema composta por Nino Rota toca 13 vezes, e há três casamentos, quatro funerais, um batizado e uma primeira comunhão.
Mas é no campo da violência que a saga se destaca. São 79 assassinatos (média de 26 por título), sendo 32 por tiro, 28 no massacre da cena do helicóptero, quatro por esfaqueamento, três por estrangulamento, dois por envenenamento, dois por homem-bomba, um em explosão de carro, um por asfixia, um com uma haste de óculos e três por armas não identificadas. Nove tiros são disparados contra o personagem de Marlon Brando na sequência da fruteira, e um fuzilamento dura 25 segundos. Um peixe é morto, e um cavalo tem sua cabeça cortada e depositada em uma cama, aos pés de um sujeito que resistira a uma solicitação de Don Corleone. Agora, sua proposta tornara-se irrecusável.