É comum que filmes estrangeiros sejam vítimas da falta de fidelidade ou de criatividade ao serem rebatizados no Brasil. Mais raro é o caso de um título nacional ser melhor do que o original. Enquadra-se nessa categoria Fogo Contra Fogo, nome dado a Heat (1995), policial do diretor Michael Mann em cartaz nas plataformas de streaming Amazon Prime Video, Globoplay e Star+.
A tradução literal de Heat (calor, aquecimento) não dá conta dos dois sentidos estabelecidos por Fogo Contra Fogo.
No nível da narrativa, temos o duelo entre dois homens exímios naquilo que fazem, ambos com suas vidas pessoais estragadas pela dedicação ao trabalho. A solidão de um é visualmente sintetizada em sua casa ampla e sem móveis em Los Angeles, com uma grande janela que dá vista para o mar — quando ele fita o horizonte, é como se estivesse mirando uma paz de espírito impossível de ser alcançada. O outro está no seu terceiro casamento, que vai de mal a pior — cada vez mais uma figura fantasmagórica, ele ouve da esposa: "Você não mora comigo, você vive entre os restos de pessoas mortas. Você vasculha os detritos, lê o terreno, procura sinais de passagem, o cheiro de suas presas e depois as caça. Essa é a única coisa com a qual você está comprometido. O resto é a bagunça que você deixa ao passar".
Os dois personagens só estão separados pela lei e pela ética: um é o ladrão Neil McCauley, o outro é o policial Vincent Hanna. O primeiro não vai hesitar em sacrificar inocentes em nome do bem pessoal; o segundo sacrificou a si próprio para proteger inocentes. McCauley será caçado por Hanna depois que um meticuloso e milionário assalto a um carro-forte termina em um banho de sangue.
No nível dos bastidores, temos outro duelo entre dois homens exímios naquilo que faziam: à época da estreia do filme, não seria exagero apontar Robert De Niro e Al Pacino como os maiores atores do cinema estadunidense. De Niro, então com 52 anos, trazia no currículo dois Oscar — o de ator coadjuvante por O Poderoso Chefão: Parte II (1974) e o de melhor ator por Touro Indomável (1980) — e mais quatro indicações, todas na categoria principal: Taxi Driver (1976), O Franco Atirador (1978), Tempo de Despertar (1990) e Cabo do Medo (1991). Pacino, que tinha 55 anos, recém havia conquistado sua única estatueta, na pele do protagonista de Perfume de Mulher (1992), depois de concorrer três vezes como coadjuvante — O Poderoso Chefão (1972), Dick Tracy (1990) e O Sucesso a Qualquer Preço (1992) — e mais quatro vezes como melhor ator: Serpico (1973), O Poderoso Chefão: Parte II (1974), Um Dia de Cão (1975) e Justiça para Todos (1979).
A campanha de marketing alardeava que em Fogo Contra Fogo veríamos De Niro e Pacino contracenando pela primeira vez — como os créditos acima evidenciam, eles trabalharam no segundo capítulo da saga da família Corleone, interpretando pai e filho, mas em tempos diferentes (O Poderoso Chefão: Parte II pode ser visto no Amazon Prime Video e no Paramount+). Para o filme de Michael Mann, os dois atores resolveram não ensaiar o antológico diálogo de seis minutos que seus personagens travam durante um café. A ideia, diz De Niro, era deixar mais genuína a falta de familiaridade entre Hanna e McCauley — que acabam se reconhecendo como reflexos um do outro.
Com o objetivo de garantir fluidez nas improvisações, o cineasta instruiu o diretor de fotografia Dante Spinotti, seu habitual colaborador, a filmar com duas câmeras, uma por cima do ombro de Pacino, a outra por cima do ombro de De Niro. Por isso que jamais vemos os rostos dos dois no mesmo plano. O papo é reto entre dois homens tão próximos quanto opostos.
— Eu não sei fazer outra coisa — diz Hanna.
— Nem eu — responde McCauley.
— Eu também não quero muito (fazer outra coisa) — acrescenta o policial.
— Nem eu — concorda o ladrão.
O encontro teve como cenário o restaurante Kate Mantilini — aliás, Mann não rodou nada em estúdio, só usou locações, o que, com o perdão do trocadilho, intensifica o calor do filme. Antes de fechar as portas, em 2014, o estabelecimento tratou de capitalizar a mitologia de Fogo Contra Fogo. Mantinha acima da porta um painel em néon com o título em inglês, pendurou na parede um grande pôster de Pacino e De Niro na cena e permitia aos clientes solicitarem a mesma mesa ocupada pelos personagens, a de número 71, que passou a ser conhecida como The Table (A Mesa).
O jogo de gato e rato entre Hanna e McCauley se desenrola ao longo de quase três horas (são 170 minutos de duração) que passam voando graças ao talento e ao carisma dos dois astros e às habilidades como diretor e roteirista de Mann — que já havia contado a mesma história no telefilme Os Tiras de Los Angeles (1989). Realizador de Profissão: Ladrão (1981), Caçador de Assassinos (1986), Colateral (2004), Miami Vice (2006) e Inimigos Públicos (2009), ele é um esteta e um filósofo dos filmes policiais. Em Fogo Contra Fogo, intercala intensas e orquestradas cenas de ação — repare no longo (10 minutos!) e selvagem tiroteio pelas ruas de Los Angeles na saída de um assalto a banco, cuja crueza é realçada pela captação de som ao vivo, via microfones espalhados pelo set, em vez do tradicional processo de "dublagem" na pós-produção —, com subtramas que, em vez de desviar nossa atenção, ajudam a encorpar a atmosfera de desamparo e ansiedade.
A enteada adolescente de Hanna (o segundo papel na carreira de Natalie Portman) sofre porque seu pai biológico nunca aparece — é tão ausente que nem o espectador o vê. Um ex-presidiário (Dennis Haysbert) fica orgulhoso ao arranjar emprego em uma lanchonete, até descobrir que o patrão é abusivo. Integrante da quadrilha de McCauley, Chris Shiherlis (Val Kilmer) vê seu vício em apostas fazer desmoronar o relacionamento com Charlene (Ashley Judd), mãe de seu filho.
A Portman, Haysbert, Kilmer e Judd, somam-se Jon Voight, Tom Sizemore, Diane Venora, William Fichtner, Danny Trejo, Kevin Gage... Todas as peças são importantes no tabuleiro de Fogo Contra Fogo, que não foi lembrado nas premiações, mas cuja influência extrapola o âmbito cinematográfico (vide o game Grand Theft Auto, que prestou tributo nas edições de 2001, 2008 e 2013). Se, por um lado, há relatos de roubos na África do Sul, na Colômbia, na Dinamarca, na Noruega e na própria Los Angeles que teriam sido inspirados pelo filme, por outro consta que a cena em que o personagem de Val Kilmer atira em múltiplas direções e recarrega rapidamente sua arma teria sido usada como exemplar em treinamento de fuzileiros navais dos EUA.
No cinema, a herança de Fogo Contra Fogo pode ser observada em títulos como Irresistível Paixão (1998), de Steven Soderbergh — o bate-papo em um bar de hotel entre o ladrão vivido por George Clooney e a policial federal encarnada por Jennifer Lopez emula a de McCauley e Hanna —, Covil de Ladrões (2018), de Christian Gudegast, e As Viúvas (2018), de Steve McQueen. Edgar Wright, o diretor de Em Ritmo de Fuga (Baby Driver, 2017) já declarou que Fogo Contra Fogo "é, obviamente, um avô dos filmes de assalto". Um parente bem próximo é Atração Perigosa (2010), de Ben Affleck. E um filme assumidamente apaixonado é Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008).
A propósito, o cineasta Christopher Nolan mediou um painel sobre Fogo Contra Fogo com Michael Mann, Robert De Niro e Al Pacino realizado em 2016 e incluído nos extras da edição definitiva em Blu-ray lançada no ano seguinte. A escalação de Willian Fichtner para o elenco é uma das citações presentes nessa sombria aventura do Homem-Morcego, que retoma a fotografia fria e azulada, o peso da cidade, o caráter obsessivo dos personagens e, claro, um mirabolante assalto a banco por uma quadrilha mascarada. A maior homenagem não poderia ser outra: a cena de Pacino e De Niro no restaurante é referenciada no interrogatório do Batman com o Coringa. Tanto no posicionamento da câmera e na edição do diálogo (plano e contraplano, plano e contraplano) quanto no teor da conversa, em que o vilão diz ao herói que eles são duas caras da mesma moeda ("Você me completa!", diz o postumamente oscarizado Heath Ledger).
O duplo reencontro de Pacino e De Niro
Depois de Fogo Contra Fogo, Robert De Niro, hoje com 78 anos, e Al Pacino, 82, trabalharam juntos mais duas vezes. Primeiro, no sofrível As Duas Faces da Lei (2008), de John Avnet, no qual estão lado a lado. Interpretam detetives de Nova York parceiros há mais de 30 anos, conhecidos como Turk (De Niro) e Rooter (Al Pacino). Eles investigam homicídios cometidos por um serial killer, que elimina criminosos impunes e deixa como pista poemas justificando por que estes mereceram ser justiçados à bala. O enredo é por demais manjado, ainda que confuso, e os cacoetes visuais e narrativos acabam atraindo mais atenção do que os dois atores. O filme está disponível no Amazon Prime Video.
A segunda colaboração foi bem mais robusta: O Irlandês (2019), que disputou 10 Oscar, incluindo melhor filme e direção (mas não ganhou nenhum). Nesta espécie de parque temático de Martin Scorsese, De Niro — em seu nono longa-metragem com o cineasta de Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995) — encarna Frank Sheeran, um assassino da máfia. Seu personagem tem um misto de brutalidade e fragilidade, um olho para Deus, o outro para o Diabo; seu sofrimento é quase silencioso, e sua violência chega a ser discreta. O ator merecia concorrer aos principais troféus de melhor ator, mas não emplacou nenhuma indicação. Aliás, depois de Cabo do Medo (1991) De Niro só voltou à festa do Oscar como concorrente ao prêmio de coadjuvante por O Lado Bom da Vida (2012).
Sheeran vai se envolver com chefões como Russell Bufalino e Joseph "Crazy Joe" Gallo; vai testemunhar a frustração dos mafiosos diante da revolução cubana liderada por Fidel Castro (que acabou com os lucrativos cassinos); vai assistir à ascensão e queda do clã Kennedy (John, o presidente, e Robert, o procurador-geral, ambos supostamente assassinados por traírem a instituição criminosa); e vai, principalmente, trabalhar como capanga de Jimmy Hoffa, que comandou o bilionário sindicato dos transportadores de carga americanos entre 1957 e 1971 e que, quatro anos depois, quando tentava retomar seu poder, desapareceu, sob circunstâncias investigadas à exaustão mas nunca esclarecidas.
O papel de Hoffa é interpretado por Pacino, em sua estreia sob o comando de Scorsese. Ou melhor: Al Pacino interpreta Al Pacino no papel de Jimmy Hoffa. Com suas tiradas cômicas e suas explosões um tanto previsíveis, ele tenta aproveitar cada instante para roubar a cena. Mas é quando reduz um pouco a intensidade que ele nos faz lembrar do grande ator que um dia já foi, antes de se assumir como uma caricatura de si próprio. Não à toa, acabou recebendo uma indicação ao Oscar (a primeira desde Perfume de Mulher), ao Bafta e ao Globo de Ouro de melhor ator coadjuvante. O Irlandês está em cartaz na Netflix.