Faço um convite ao espectador de Top Gun: Maverick (2022) que estava alheio à vida de Val Kilmer nos últimos anos: depois de ver a nova aventura aérea protagonizada por Tom Cruise, recém lançada em cerca de 1,6 mil salas de cinema do Brasil, assista ao documentário Val (2021), dirigido por Ting Poo e Leo Scott e disponível no Amazon Prime Video. É um filme surpreendente do começo ao fim.
A primeira surpresa está ligada à cena de abertura, uma gravação em VHS dos bastidores de Top Gun: Ases Indomáveis (1986).
Nela, Kilmer e outros integrantes do elenco, como Rick Rossovich, brincam que precisam de mais bebida, mais tabaco, mais mulheres e menos Tom Cruise no set. Ao longo do documentário, o ator que encarnou o arrogante Iceman, rival do mocinho Maverick, faz revelações sobre esse filme do qual nem queria participar, mas que acabou lhe trazendo enorme popularidade, e sobre várias outras produções — cinematográficas ou teatrais — em que se envolveu durante quase 40 anos de carreira. Isso porque, como explica Val, ele sempre fez questão de registrar em vídeo momentos de sua vida profissional e de sua vida íntima. E não apenas os felizes.
A segunda surpresa é descobrir que a voz a narrar as memórias deste californiano de 62 anos nascido e criado bem perto de Hollywood não é de Val, mas de Jack, 26, filho de Kilmer com a atriz inglesa Joanne Whalley.
Casados em 1988, eles tiveram a primeira filha, Mercedes, em 1991 e se divorciaram em 1996. O ator recebeu o diagnóstico de câncer na garganta em 2014. Passou por quimioterapia, radioterapia e, então, pela traqueostomia, que, como ele conta no documentário, o obriga a escolher entre respirar, comer e falar.
A terceira surpresa é a forma como Val Kilmer lida com esse drama e outras adversidades e o tom que adotou para abordá-los.
Val tem um protagonista hollywoodiano, mas não é um filme hollywoodiano: sua história não é de superação, mas de adaptação. Há um misto de melancolia e otimismo, uma alternância entre o olhar racional da maturidade e uma alegria pueril que o ator soube preservar (vide seu próprio figurino, que alguém já definiu como uma espécie de "Justin Bieber de meia-idade"). Daí que o documentário pode se permitir passagens como aquela em que dois astros contemporâneos de Kilmer, nos tempos de juventude, baixam as calças e mostram a bunda para a câmera do colega. Ou aquela em que, já quase um sessentão, Val, antes de um funeral, diverte-se atirando com uma pistola de brinquedo contra Joanne e os filhos.
A quarta surpresa é que, embora seja francamente unilateral — não sabemos, por exemplo, o que Joanne tem a dizer sobre a separação do casal nem o que pensam diretores sobre a fama de "difícil" adquirida por Kilmer (Joel Schumacher chegou a chamá-lo de "irracional, infantil, rude, despropositado" em um artigo para a revista Entertainment Weekly) —, Val expõe as fragilidades de seu personagem.
O documentário o acompanha em uma convenção dedicada à cultura pop, para onde foi convidado por conta de ter estrelado Batman Eternamente (1995), e em um evento para fãs de faroeste, onde é exibido em um telão ao ar livre Tombstone (1993), no qual interpretou Doc Holliday, o grande amigo do xerife Wyatt Earp. Na primeira, presenciamos o contraste entre o herói da tela e o homem derrubado da vida real: o ator passa mal e precisa interromper a sessão de autógrafos. Na segunda, Kilmer reconhece que está vivendo do seu passado, não do seu presente. Mas não deixa de retribuir e de se sentir energizado pelo carinho da audiência.
A quinta surpresa demandou uma pesquisa na internet: ainda que tenha feito vários papéis marcantes, como os de Tombstone, Fogo Contra Fogo (1995) e Beijos e Tiros (2005), Val Kilmer nunca concorreu ao Oscar. Nem mesmo pelo Jim Morrison que encarnou com tamanha devoção em The Doors (1991).
A sexta surpresa antecede o capítulo focado em The Doors.
Apesar de ter sido o mais jovem aluno aceito na prestigiada escola de interpretação Juilliard, em Nova York, Kilmer sempre soube que não era um Marlon Brando. Apaixonado por atuar, pelo "momento onde você termina e o personagem começa", como diz no documentário, ele se empenhava mesmo em comédias do tipo besteirol, como Top Secret! (1984), sua estreia cinematográfica, e empreendia esforços para ser dirigido pelos grandes cineastas. Val revela os testes de vídeo que o ator preparou pensando em viver o protagonista de um dos principais filmes de Martin Scorsese e em aparecer em um dos derradeiros títulos de Stanley Kubrick. Eis um astro que vibrava quando podia orbitar um sol do tamanho do próprio Brando — mesmo que em um desastre anunciado como A Ilha do Dr. Moreau (1996) — ou de Robert De Niro e Al Pacino, em Fogo Contra Fogo. Mas eis também um astro que precisava de espaço para gravitar, por isso que, contrariando qualquer manual do sucesso em Hollywood, desistiu de vestir por uma segunda vez o uniforme do Batman, assumido por George Clooney em Batman & Robin (1997). Kilmer reclamou tanto do traje em si, que limitava seus movimentos e sua audição, quanto da liberdade que Jim Carrey e Tommy Lee Jones tiveram para desenvolver os vilões Charada e Duas-Caras.
A sétima surpresa remete ao início do documentário: é comovente quando, pela combinação das cenas de arquivo com as imagens gravadas para o filme, entendemos a importância dos braceletes e dos colares usados por Val Kilmer.
E há mais surpresas no documentário, dependendo do quanto você conhece da carreira e da vida pessoal do biografado. Há até pegadinhas mórbidas, sem falar naquilo que ficou oculto: não há, por exemplo, comentários sobre o relato de que ele queimou com um cigarro um integrante da equipe de A Ilha do Dr. Moreau, nem sobre seu relacionamento com a atriz Daryl Hannah, entre 2001 e 2002, definido pelo próprio ator, na autobiografia I'm your Huckleberry (2020), como seu último namoro e sua mais dolorosa separação. Mas chacotas e omissões não deixam de ser indicadores de uma certa coerência. Afinal, representar, fingir, ser outro é a essência de Val Kilmer: "Eu vivi na ilusão quase tanto quanto vivi fora dela".