Resgatado de um limbo com a estreia da plataforma de streaming HBO Max, Na Captura dos Friedmans (2003) é um documentário indicado ao Oscar que se debruça sobre terríveis segredos de família — a exemplo de títulos mais recentes, como Três Estranhos Idênticos (2018) e Diga Quem Sou (2019), mas de forma ainda mais impactante.
No subestimado filme de suspense Retratos de uma Obsessão (2002) — outro que merecia ser recuperado para as novas audiências —, o personagem de Robin Williams acompanha, através das fotos que revela, uma família aparentemente perfeita.
— Ao folhear nossos álbuns, vemos o registro de uma existência feliz — diz ele. — Ninguém tira fotos de algo que quer esquecer.
Pois bem.
Em Na Captura dos Friedmans (Capturing the Friedmans), uma típica família estadunidense registra em vídeo seu próprio desmoronamento — o que torna ainda mais chocante essa produção sobre um dos mais escandalosos crimes sexuais dos Estados Unidos. O título, portanto, pode ser lido tanto sob o viés policial quanto sob a própria ótica cinematográfica.
O documentário é dirigido pelo então estreante Andrew Jarecki — depois, ele faria a ficção Entre Segredos e Mentiras (2010), com Ryan Gosling e Kirsten Dunst, e a minissérie documental The Jinx (2015), sobre o empresário Robert Alan Durst, um herdeiro imobiliário suspeito de ser um assassino em série. Além de concorrer ao Oscar, Na Captura dos Friedmans foi premiado no Festival de Sundance (EUA) e na Mostra Internacional de São Paulo.
O filme reconstitui as investigações e o julgamento do renomado professor de piano e computação Arnold Friedman e o caçula de seus três filhos, acusados de abusar sexualmente de dezenas de meninos. Os Friedmans moravam na pequena e bem-sucedida Great Neck, perto de Long Island. Por conta de uma correspondência com pornografia infantil, a polícia visita a casa de Arnold.
Na véspera do feriado de Ação de Graças de 1987, os policiais voltam ao local. Apreendem revistas e incriminam Arnold e Jesse, 18 anos, por molestar alunos de computação.
O diretor Jarecki entrevistou a ex-mulher de Arnold, Elaine, seu filho mais velho, David — o mais famoso palhaço de festas de Nova York —, e Jesse. O filho do meio, Seth, não quis participar do documentário, que também traz depoimentos de policiais, advogados, promotores, juízes, jornalistas, ex-alunos, supostas vítimas e seus pais.
Há ainda o irmão de Arnold, Howard, que a certa altura se permite um gracejo (talvez o único de Na Captura dos Friedmans):
— Família, como se diz, disfuncional? Somos a número 1.
O cruzamento dos depoimentos gera um paradoxo: assim como os entrevistados demonstram perplexidade, o espectador também se questiona em quem deve acreditar.
Jarecki afirma: "No nível filosófico, o filme é sobre a natureza ilusória da verdade". É sobre como a memória pode ser manipulada de acordo com nossas necessidades.
Os indícios de que Arnold e Jesse cometeram os crimes são fortíssimos, mas é muito intrigante que nunca tenha surgido sequer uma evidência física. Em alguns pontos, o caso se assemelha ao da Escola Base, ocorrido em São Paulo, em 1994 (os donos foram inocentados da denúncia de abuso sexual, mas nunca se recuperaram psicológica e financeiramente do massacre promovido sobretudo pela imprensa).
O documentário importa ferramentas do suspense (há revelações surpreendentes, e o destino dos envolvidos só é mostrado no epílogo) e dos reality shows — graças ao hábito dos Friedmans de nunca desligarem a câmera, mesmo nas horas mais íntimas e tensas.
Estamos junto a eles quando a polícia prende Arnold e Jesse. Quando a estratégia de defesa é discutida à mesa da cozinha. Quando Elaine, diante do devastado Arnold e dos filhos que negam veementemente a culpa do pai, explode, perguntando por que deve ter carinho pelo marido.
Por que os Friedmans perpetuaram sua tragédia? Pode ser que inconscientemente soubessem que só conseguiriam entender tudo, que aconteceu de forma rápida, com o distanciamento do futuro. Pode ser, como sugere Jarecki no material de divulgação, que o estranho senso de humor dos homens da família possibilitasse apreciar o caso como um espetáculo.
É David, contudo, quem fornece o motivo mais significativo.
— Comecei a gravar para não ter que lembrar de tudo — afirma o primogênito de Arnold, contradizendo o protagonista de Retratos de uma Obsessão.
É como se David quisesse expurgar suas memórias para as fitas de vídeo. Como se quisesse transformar aquela verdade dolorosa e palpável em filme — por extensão, em ficção.