Redescobri na Netflix mais um filme vítima dos distribuidores brasileiros na hora de ser rebatizado no país: O Despertar de uma Paixão (The Painted Veil, 2006), uma coprodução entre Estados Unidos e China que adapta o romance O Véu Pintado, do escritor britânico W. Somerset Maugham (1874-1965).
A fórmula foi aplicada inúmeras vezes, nunca correspondendo ao título original e até se repetindo — vide Marcas de uma Paixão (Siesta, 1987), Vítimas de uma Paixão (Sea of Love, 1989), Loucos de Paixão (White Palace, 1990), Lendas da Paixão (Legends of the Fall, 1994), Irresistível Paixão (Out of Sight, 1998), Sabor da Paixão (Woman on Top, 2000), Diário de uma Paixão (The Notebook, 2004), O Sabor de uma Paixão (The Ramen Girl, 2008), Brilho de uma Paixão (Bright Star, 2009), Maluca Paixão (All About Steve, 2009) e Refém da Paixão (Labor Day, 2013).
Apesar do nome extremamente banal, O Despertar de uma Paixão é um filme ímpar. Trata-se de um drama romântico com pano de fundo histórico em uma paisagem deslumbrante, evocando O Céu que nos Protege (1990) ou O Paciente Inglês (1996). Conta a história de um conturbado casal inglês — o sisudo bacteriologista Walter Fane (Edward Norton) e a fútil e mimada Kitty (Naomi Watts) — em meio a uma epidemia de cólera na zona rural da China de 1925.
Maugham já foi levado quase uma centena de vezes ao cinema e à TV, em títulos como Servidão Humana, O Fio da Navalha, A Carta e Adorável Julia. Dirigido por John Curran, de Tentação (2004, também com Naomi Watts) e Homens em Fúria (2010, também com Edward Norton), O Despertar de uma Paixão é a terceira adaptação de O Véu Pintado — a primeira, de 1934, foi estrelada por Leslie Howard e Bette Davis. Naquela época, como apontou Manohla Dargis no New York Times, o cenário chinês emprestava exotismo à história; na mais recente versão, são as convenções sociais que parecem tão estranhas (a volúpia feminina, por exemplo, tinha perfume de escândalo).
Kitty não se casou com Walter por amor, mas para fugir da pressão da mãe para que arranjasse um marido — a moça já estava "velha" para permanecer solteira. Kitty só descobrirá o amor nos braços de Charles Townsend (Liev Schreiber), vice-cônsul britânico em Xangai. Por vingança, Walter aceita trabalhar em uma vila assolada pelo cólera. Ou Kitty o acompanha, ou ele pedirá o divórcio e denunciará o adultério, então um crime.
A viagem do casal mostra-se também uma jornada de conhecimento, como se agora, a céu aberto, suas vidas fossem postas à luz uma para a outra. De modo sutil, o diretor John Curran espelha na crise conjugal o contexto histórico do filme, que se passa no auge do nacionalismo chinês: tal qual os colonizadores ingleses, Walter estava tentando moldar Kitty a sua própria imagem.
Diante de uma língua estranha, os dois são forçados a se ouvirem. O estabelecimento desse diálogo, sem resvalos para a pieguice, é um dos pontos altos desse filme bonito e triste, ao qual se somam as atuações de Norton e Watts, a esplêndida fotografia e a pulsante música composta pelo francês Alexandre Desplat, premiada com o Globo de Ouro.