Morto na última terça-feira (17), aos 79 anos, o grego Vangelis não teve uma carreira no cinema tão consistente e longeva como a do estadunidense John Williams, 90, que entre 1968 e 2020 somou 52 indicações ao Oscar (é o recordista entre os artistas vivos e o segundo no geral, só perdendo para as 59 de Walt Disney), com cinco triunfos — O Violinista no Telhado (1971), Tubarão (1975), Guerra nas Estrelas (1977), E.T.: O Extraterrestre (1982) e A Lista de Schindler (1993). Ou a do italiano Ennio Morricone (1928-2020), célebre pelos faroestes de Sergio Leone dos anos 1960 (Por um Punhado de Dólares, Três Homens em Conflito, Era uma Vez no Oeste...), compositor dos inesquecíveis temas de A Missão (1986), Os Intocáveis (1987) e Cinema Paradiso (1988) e oscarizado por Os Oito Odiados (2015).
Contudo, durante pouco mais de uma década o nome artístico adotado por Evángelos Odysséas Papathanassíou soava tão alto quanto o de um astro de Hollywood.
Entre 1981 e 1992, Vangelis trabalhou com cineastas consagrados, como seu conterrâneo Costa-Gavras (em Desaparecido) e o franco-polonês Roman Polanski (em Lua de Fel). São dessa época suas duas parcerias com o diretor inglês Ridley Scott, pelas quais concorreu ao Globo de Ouro: Blade Runner: O Caçador de Androides (1982) e 1492: A Conquista do Paraíso (1992).
Em Blade Runner, ele misturou os sintetizadores do rock progressivo (gênero no qual havia despontado, na virada dos anos 1960 para os 1970) com o saxofone do jazz e influências árabes. O resultado, tão atmosférico quanto marcante, é uma trilha indissociável do filme: sempre que lembramos de uma cena, evocamos também a sua música — e vice-versa.
Esse noir futurista ajudou a sedimentar a associação de Vangelis com a exploração espacial. Em 1980, o cientista Carl Sagan já havia utilizado composições do grego na série de TV Cosmos. Em 1995, um asteroide foi batizado com seu nome (6354 Vangelis). Ele também criou a trilha sonora para missões da Nasa (a Mars Odyssey, de 2001, e a Juno Jupiter, de 2011) e inspirou-se na sonda espacial Rosetta para produzir o álbum homônimo de 2016.
Se Vangelis notabilizou-se como o compositor do amanhã, também soube ouvir o passado. No épico 1492, que narra a viagem de Cristóvão Colombo à América, o grego agregou elementos da folia espanhola, guitarra portuguesa, flautas e coros. Hipnótico, o lindo tema principal consegue, mesmo desacompanhado das imagens, nos transportar para um tempo que jamais vivemos. (Sem repetir o brilhantismo, o artista empregou fórmula semelhante para criar, em 2004, a trilha de Alexandre, dirigido por Oliver Stone.)
Mas foi na seara esportiva que Vangelis conquistou o paraíso. Em sua primeira e única indicação ao Oscar, o grego foi premiado pela trilha de Carruagens de Fogo (1981), que também levou as estatuetas de melhor filme, roteiro original e figurinos. O diretor Hugh Hudson reconstitui a preparação de dois atletas do Reino Unido para as Olimpíadas de 1924, em Paris: Eric Liddel (Ian Charleson) é um missionário escocês que corre por devoção a Deus, e Harold Abrahams (Ben Cross), filho de judeus, quer provar sua capacidade para a comunidade de Cambridge.
Batizado inicialmente de Titles e depois identificado com o título em inglês do filme, Chariots of Fire, o tema principal chegou a alcançar o primeiro lugar da parada da revista estadunidense Billboard — uma façanha para uma faixa instrumental e de um artista grego. Extremamente inspiradora, foi adotada pela BBC, do Reino Unido, nas transmissões televisivas dos Jogos Olímpicos de 1984, em Los Angeles, e de 1988, em Seul. Nas Olimpíadas de Atlanta, em 1996, marcou a final da prova masculina dos 100m rasos. Nos Jogos de Londres, em 2012, embalou a entrada dos atletas na cerimônia de abertura — que contou com uma participação cômica de Mr. Bean, o famoso personagem encarnado pelo inglês Rowan Atkinson.
Aliás, não faltam exemplos do emprego em tom de piada. É um atestado do quanto a composição entronizou-se na memória coletiva, após ser usada em eventos como a apresentação, por Steve Jobs, do primeiro Macintosh desenvolvido pela Apple, em 1984, e na chegada dos competidores da Corrida de São Silvestre, no Brasil. (Na combinação dos fatores capacidade de empolgar e penetração na cultura popular, talvez o único rival à altura seja Gonna Fly Now, a canção de Bill Conti, Carol Connors e Ayn Robbins em Rocky, um Lutador, de 1976 — quem nunca se imaginou, diante de um desafio, subindo os degraus de pedra do Museu de Arte da Filadélfia, como o Rocky Balboa interpretado por Sylvester Stallone?) Se Carruagens de Fogo virou um clichê dos momentos de superação (e das cenas de câmera lenta), é porque Vangelis foi um gênio ao traduzir musicalmente a combinação de sacrifício e satisfação que pode nos levar a glória.