Documentários sobre crimes reais são um dos carros-chefe da Netflix. Eu confesso que costumam ser atrações irresistíveis. Não necessariamente pela morbidez envolvida, mas porque seus realizadores, por um lado, lançam mão de técnicas dos filmes e seriados de suspense; por outro, têm nas mãos histórias às vezes inacreditáveis — fossem tramas de ficção, talvez a gente achasse inverossímil.
Um título exemplar é o já clássico Making a Murderer (2015-2018). O vilão desse fenômeno de público e de crítica não é uma pessoa, mas o sistema jurídico dos Estados Unidos. Os 10 episódios da primeira temporada mostram como é possível criar um assassino combinando um crime nebuloso, uma investigação policial negligente e direcionada e uma engrenagem legal incapaz de filtrar falhas processuais que podem levar à condenação um inocente. No caso, Steven Avery, um sujeito meio bronco e com passado de encrencas sem maior gravidade na pacata Manitowoc, cidadezinha do Estado de Wisconsin.
Em 2003, Avery ficou nacionalmente conhecido ao ser inocentado, graças a um exame de DNA, da acusação de estupro que o fez passar 18 anos na prisão. O culpado era outro, como sempre afirmou. Ele ganhou um pedido de desculpas da vítima que o havia reconhecido como agressor e foi recomeçar a vida tocando seu ferro-velho. Mas eis que, em 2005, quando tramitavam tanto uma ação para indenizar Avery no valor de US$ 36 milhões quanto uma mudança de legislação inspirada nos erros grosseiros que marcaram seu caso, ele foi acusado de um novo crime: assassinato e ocultação do cadáver de uma jovem fotógrafa. A inusitada situação chamou a atenção das diretoras e roteiristas Moira Demos e Laura Ricciardi, estudantes de cinema da Universidade de Columbia, que acompanhariam o caso ao longo de uma década.
Confira, abaixo, outros 10 documentários da Netflix sobre crimes reais que parecem obras ficcionais. Clique nos links se quiser saber mais.
Bandidos na TV (2019)
Nos sete episódios, o diretor britânico-paraguaio Daniel Bogado conta a história do apresentador de TV Wallace Souza, que se elegeu três vezes deputado estadual no Amazonas, em 1998, em 2002 e em 2006, graças a sua suposta luta contra o tráfico de drogas, mote de um programa sensacionalista e sangrento, o Canal Livre. Suposta porque, segundo um delator, Wallace comandava uma organização criminosa — a suspeita é de que ele próprio planejava os homicídios que alavancavam a audiência do programa. Bandidos na TV mostra a comoção causada junto à mídia e à opinião pública (dividida quanto à culpabilidade dos acusados), a sucessão de viradas na trama, as desconcertantes contradições dos principais personagens e as ramificações que acabam por pintar um retrato do país.
Don't F** ck with Cats: Uma Caçada Online (2019)
Com três episódios, a minissérie dirigida por Mark Lewis reconta a história de um sujeito que, em 2010, chocou as redes sociais ao postar vídeos em que aparece assassinando filhotes de gato. Isso acabou unindo pessoas de diferentes lugares, que formaram um time virtual de investigação. O documentário é imperdível por três fatores. Primeiro porque reflete sobre a tal da indignação seletiva: gatinhos, ao que parece, podem comover mais do que humanos. Segundo porque retrata bem a fome de fama instantânea, que leva algumas pessoas a escolher como porta de entrada a bizarrice ou mesmo a perversidade — o criminoso em questão não parou só nos gatinhos. E terceiro porque mostra como, hoje em dia, tudo o que fazemos deixa rastros digitais, deixa pegadas que podem ser seguidas mesmo por detetives amadores, como os dois principais narradores da série.
Fyre Festival: Fiasco no Caribe (2019)
O diretor Chris Smith reconstitui um escândalo milionário na esfera musical. Promovido por celebridades, como as modelos Alessandra Ambrósio, Bella Hadid, Emily Ratajkowski e Kendall Jenner, o Fyre Festival foi anunciado como um evento de alto padrão que seria realizado durante dois fins de semana em em uma ilha paradisíaca nas Bahamas, em 2017. Os pacotes custavam até US$ 100 mil, prometiam acomodações de luxo, o melhor da gastronomia e shows de Blink-182 e Major Lazer, entre outros artistas. Em vez disso, o público encontrou tendas de acampamento, com colchões colocados no chão encharcado pela chuva, e refeições que se limitavam a sanduíches de queijo, alface e tomate. O organizador do festival, Billy McFarland, não pagou os trabalhadores da ilha. Acabou preso por fraude.
Quem Matou María Marta? (2020)
Com direção de Alejandro Hartmann, a minissérie em quatro episódios recupera a história de um dos casos mais rumorosos da crônica policial argentina. Quanto menos você souber, melhor. Mas o próprio título já é um spoiler, pois quando o documentário começa, o viúvo, o ex-investidor da bolsa de valores Carlos Carrascosa, hoje com 77 anos, familiares e amigos de María Marta García Belsunce narram a primeira versão da morte da socióloga argentina: a de que ela havia sofrido uma espécie de acidente doméstico em 27 de outubro de 2002, aos 50 anos. Só que não.
3 Tonelada$: Assalto ao Banco Central (2022)
Um dos grandes méritos da minissérie em três partes com roteiro e direção de Daniel Billio e direção geral de Rodrigo Astiz é tirar o glamour que a ficção associa aos ladrões de banco — vide o seriado espanhol La Casa de Papel (2017-2021). Pelo menos nos filmes e nas séries, esse tipo de bandido costuma ser romantizado. Como se o dinheiro que roubam não pertencesse a ninguém, como se fossem vingadores contra o sistema capitalista (quando o que os move é justamente a ambição financeira), como se o fato de apostarem na esperteza e evitarem o uso de violência não fosse gerar, logo adiante, uma espiral de crime e morte.
3 Tonelada$ relembra o maior assalto da história brasileira. Entre os dias 5 (sexta-feira) e 7 (domingo) de agosto de 2005, um grupo formado por mais de 30 criminosos furtou R$ 164,7 milhões da caixa-forte do Banco Central de Fortaleza, no Ceará, e fugiu. O primeiro episódio, intitulado O Crime, trata de mostrar como os ladrões colocaram em prática seu plano minucioso, que incluiu a escavação de um túnel com 80 metros de comprimento. O segundo, A Caçada, foca mais na investigação policial. E o terceiro, Dinheiro Maldito, acompanha os desdobramentos do caso — que teve ramificações em Porto Alegre.
Conversando com um Serial Killer: O Palhaço Assassino (2022)
Especialista em documentários sobre crimes reais, Joe Berlinger dirige esta minissérie em três capítulos sobre o estadunidense John Wayne Gacy (1942-1994), na qual traz a público, pela primeira vez, as gravações em fita-cassete de entrevistas dadas pelo assassino a sua equipe de defesa entre novembro de 1979 e abril de 1980, enquanto aguardava o julgamento. De 1972 a 1978, Gacy matou pelo menos 33 rapazes com idades de 14 a 21 anos — que, antes de morrerem, foram submetidos a sevícias indescritíveis.
Ele mantinha a persona monstruosa sob uma fachada de um homem bem-sucedido nos negócios e com espírito comunitário. Gacy, que foi casado por duas vezes e teve dois filhos, era dono de uma empresa de reformas e construção. No papel de empreiteiro, atraiu algumas de suas vítimas. Membro do Partido Democrata, organizava festas de verão, integrou o comitê de iluminação pública de seu bairro e foi nomeado diretor de uma parada ligada à imigração polonesa em Chicago — por conta desse cargo, chegou a conhecer e ser fotografado com a então primeira-dama dos Estados Unidos, Rosalynn Carter, em 6 de maio de 1978. Também juntou-se a um clube de palhaços que se apresentava em eventos beneficentes e hospitais infantis, o Jolly Joker, no qual criou seus próprios personagens: Pogo e Patches. Graças à atuação como palhaço, tinha facilidade para ludibriar garotos fazendo o que chamou de "o truque da algema".
O Golpista do Tinder (2022)
Dirigido pela inglesa Felicity Morris, o documentário começa contando a história da norueguesa Cecilie Fjellhoy, uma loira sorridente com experiência no aplicativo de paquera: no seu celular, ela mostra que, em sete anos de uso, houve 1.024 matches. Um deles foi com Simon Leviev, que, aos 20 e tantos anos, parecia ser o príncipe encantado dos contos de fadas. Ledo engano. Em ritmo de suspense irresistível, O Golpista do Tinder fala sobre as ilusões amorosas e evidencia como estamos sujeitos aos riscos do culto à imagem e da sedução da ostentação. O dinheiro compra nossa confiança: se alguém parece pobre, suspeitamos; se alguém parece rico, pode acabar nos deixando pobres.
Não Confie em Ninguém: A Caça ao Rei da Criptomoeda (2022)
O documentário de Luke Sewell narra a trepidante história da QuadrigaCX, uma empresa canadense que negociava bitcoins. Quando seu fundador, Gerry Cotten, 30 anos, morreu misteriosamente em 2018, deixou seus clientes com um prejuízo de US$ 250 milhões. Em um primeiro momento, muitos acharam que era um golpe conduzido por Cotten com sua esposa, Jennifer Robertson. Outros tantos acharam que ela simplesmente havia dado um jeito de matar o marido. Qual é a verdade?
De Rainha do Veganismo a Foragida (2022)
É inevitável comparar a minissérie em quatro episódios com O Golpista do Tinder. Ambos são sobre mulheres vítimas de golpes praticados por homens desonestos e psicologicamente abusivos. Enredadas em um relacionamento tóxico, elas acabaram arruinadas financeiramente. As duas personagens principais se encaixam em um padrão de beleza (ambas são loiras e magras) que acaba sendo revertido contra elas junto à opinião pública. Se não fossem consideradas bonitas (condição associada, por um lado, a "sucesso", e por outro, a "burrice"), talvez não sofressem tanto no tribunal das redes sociais.
Os espectadores "não entendem" como a outrora rainha do veganismo, a estadunidense nascida na Letônia Sarma Melngailis, mesmo após muitos sinais de alerta continuou casada com Shane Fox. Na verdade, ele se chamava Anthony Strangis, mas também já se apresentou como Michael Caledonia — e a revelação de uma de suas muitas identidades falsas é um dos momentos mais desconcertantes da minissérie dirigida por Chris Smith. A história de Sarma e Strangis é cheia de reviravoltas e coadjuvantes (familiares, ex-empregados, jornalistas, policiais...). Para não estragar a surpresa de quem desconhece os fatos e os detalhes — como os que envolvem o cachorro Leon e uma pizza da Domino's —, basta dizer que, em 2015, trabalhadores do Pure Food and Wine e do One Lucky Duck (um restaurante e uma lanchonete que atraíam clientes como o ator Alec Baldwin e o casal Gisele Bündchen e Tom Brady), organizaram um protesto com cartazes e palavras de ordem em frente aos estabelecimentos para reclamar que seus salários não estavam sendo pagos. Somando as dívidas com os investidores e com os cozinheiros, os gerentes, os garçons etc, Sarma e Strangis teriam roubado US$ 2 milhões.
Segredos e Crimes de Jimmy Savile (2022)
Michael Myers? Hannibal Lecter? Coringa? Que nada. Os vilões que me assustam são os da vida real, como Jimmy Savile, DJ e apresentador de TV britânico que morreu em 29 de outubro de 2011, dois dias antes de completar 85 anos. Sim, ele nasceu no dia do Halloween.
Dirigido por Rowan Deacon e com riquíssimo material de arquivo, este documentário em duas partes rememora a ascensão de Jimmy e a descoberta de seu lado podre. Entre os programas que apresentou na BBC, estavam o musical Top of the Pops (1964-2006) e o infantil Jim'll Fix It (1975-1994), no qual se dedicava a realizar desejos enviados por crianças via correio. Tornou-se amigo da família real (a ponto de ser uma espécie de conselheiro do príncipe Charles) e, em 1990, virou Sir, a mais alta honraria da Coroa. Pesaram a seu favor a influência da então primeira-ministra Margaret Thatcher e o trabalho de caridade desenvolvido por Jimmy, com destaque para a arrecadação de fundos para o hospital Stoke Mandeville. Em todos os ambientes, fossem estúdios de TV, fossem dependências hospitalares, ele cometia abuso sexual. Mas Jimmy jamais foi preso — aliás, seus crimes contra centenas de crianças, adolescentes e mulheres jovens só foram devidamente investigados depois de sua morte.