É inevitável comparar De Rainha do Veganismo a Foragida, que estreou em março na Netflix, com O Golpista do Tinder, que fez sucesso em fevereiro na mesma plataforma.
Tanto a série documental em quatro episódios quanto o documentário de quase duas horas são sobre mulheres vítimas de golpes praticados por homens desonestos e psicologicamente abusivos. Enredadas em um relacionamento tóxico, elas acabaram arruinadas financeiramente.
As duas personagens principais — a estadunidense nascida na Letônia Sarma Melngailis, 49 anos, outrora a rainha do veganismo, e a norueguesa radicada em Londres Cecilie Fjellhøy, 27, um dos alvos do golpista do Tinder — se encaixam em um padrão de beleza (ambas são loiras e magras) que acaba sendo revertido contra elas junto à opinião pública. Se não fossem consideradas bonitas (condição associada, por um lado, a "sucesso", e por outro, a "burrice"), talvez não sofressem tanto no tribunal das redes sociais.
Quando veio à tona o caso do farsante que se dizia herdeiro de um bilionário no aplicativo de paquera, não faltou gente para ridicularizar, julgar e culpabilizar as vítimas de Simon Leviev. Ora, quem de nós nunca cometeu um desatino por amor — ou no mínimo pela ilusão do amor? Mas o machismo estrutural e a misoginia acabam influenciando a percepção. Vale lembrar o tratamento desigual no que diz respeito à vida sexual: "Homem que sai com muitas é garanhão, mulher que sai com muitos é vadia".
Os espectadores da minissérie De Rainha do Veganismo a Foragida têm reação semelhante. Muitos "não entendem" como Sarma, após muitos sinais de alerta, continuou casada com Shane Fox. Na verdade, ele se chamava Anthony Strangis, mas também já se apresentou como Michael Caledonia — e a revelação de uma de suas muitas identidades falsas é um dos momentos mais desconcertantes da minissérie dirigida por Chris Smith, o mesmo do documentário Fyre Festival: Fiasco no Caribe (2018), que também aborda um caso de fraude, e da série O Desaparecimento de Madeleine McCann (2019), além de ser um dos produtores de A Máfia dos Tigres (2020-2021), todos títulos disponíveis na Netflix.
A história de Sarma e Strangis é cheia de reviravoltas e coadjuvantes (familiares, ex-empregados, jornalistas, policiais...) que justificam os quatro episódios. Para não estragar a surpresa de quem desconhece os fatos e os detalhes — como os que envolvem o cachorro Leon e uma pizza da Domino's —, basta dizer que, em 2004, com o seu então namorado Matthew Kenney, um chef celebridade, e com o investidor Jeffrey Chodorow, ela abriu o restaurante Pure Food and Wine, em Nova York; servindo apenas pratos veganos (sem origem animal) e crus, que atraiu clientes como o ator Alec Baldwin e o casal Gisele Bündchen e Tom Brady. E que, em 2015, trabalhadores do Pure Food and Wine e do One Lucky Duck (uma casa de lanches, sucos e produtos orgânicos localizada ao lado do restaurante) organizaram um protesto com cartazes e palavras de ordem em frente aos estabelecimentos para reclamar que seus salários não estavam sendo pagos; somando as dívidas com os investidores e com os cozinheiros, os gerentes, os garçons etc, Sarma e Strangis teriam roubado US$ 2 milhões.
De Rainha do Veganismo a Foragida conta como foi feito o desfalque e no que foi gasto esse dinheiro. Mas o diretor Chris Smith está menos preocupado com as minúcias contábeis do que em tentar compreender como a talentosa e bem-sucedida Sarma foi enganada por um vigarista aparentemente tão óbvio. E como ela seguiu jogando pelas regras de Strangis.
Há quem vá pensar que, no fundo, Sarma sabia de tudo. Ou quem, como foi dito antes, vá chamá-la de tonta para baixo.
Eu vejo Sarma mais como uma vítima do gaslighting, termo em inglês que define uma forma específica de abuso psicológico, de manipulação emocional.
— O abusador distorce ou inventa informações com a intenção de fazer com que a vítima duvide da própria sanidade e da capacidade de ler a realidade — disse a GZH em março, por causa de um atitude de Arthur Aguiar no Big Brother Brasil 22, Joanna Burigo, mestre em Gênero, Mídia e Cultura pela London School of Economics e coordenadora da ONG Emancipa Mulher.
O termo é derivado de uma peça de teatro inglesa, Gas Light (1938), que depois virou um filme noir estadunidense, À Meia-Luz (Gaslighting, 1944), de George Cukor. No cinema, o personagem Gregory (interpretado por Charles Boyer) é casado com Paula (Ingrid Bergman) e planeja internar a mulher como mentalmente incapaz para poder tomar conta de sua fortuna.
— Para gerar essa impressão de insanidade, ele manipula as lâmpadas de gás da casa, para que balancem quando ela está sozinha — lembra Burigo. — A personagem da Ingrid Bergman diz que as lâmpadas balançam, ao que ele responde: "Querida, você está imaginando, porque toda vez que eu estou aqui elas não balançam".
A pesquisadora prossegue:
— A vítima do gaslighting costuma se sentir bastante confusa, em dúvida sobre si mesma. Também pode ter medo de pensar e agir sozinha e estar sempre pedindo desculpas para essa pessoa abusadora. Alguns sinais para ficar atenta na pessoa que faz o gaslighting: ela mente descaradamente, nega ou troca informações sobre a realidade, é incoerente, faz chantagem emocional, humilha. Todo o objetivo da pessoa que está fazendo o gaslighting é confundir a percepção que a vítima tem da realidade e de si mesma.
Strangis fez tudo isso com Sarma. Por mais que ela pudesse identificar os traços perniciosos de seu marido, não conseguia cortar os laços, denunciá-lo, escapar para o mundo real. Se as pessoas se tornam dependentes de drogas e remédios, se não conseguem frear a compulsão por sexo ou por compras, se o jogo pode virar patológico, por que alguém não poderia se revelar viciada em um relacionamento tóxico?
Mas o fato de Sarma Melngailis protagonizar a narrativa, falando sobre seus erros (e ela também cometeu os seus, sem dúvida) com calma, sem lágrimas e com uma postura corporal muito controlada, parece contribuir para o processo de culpabilização da vítima — como escreveu Alison Lanier no site Pajiba, Sarma, sentada em uma cadeira, está "emoldurada como um alvo no centro da tela".
Essa visão em relação às mulheres é recorrente, como se observa em um documentário que a Netflix lançou duas semanas após a estreia de De Rainha do Veganismo a Foragida. Dirigido por Luke Sewell, Não Confie em Ninguém: A Caça ao Rei da Criptomoeda reconstitui o escândalo da QuadrigaCX, uma empresa canadense que negociava bitcoins. Quando seu fundador, Gerry Cotten, 30 anos, morreu misteriosamente em 2018, deixou seus clientes com um prejuízo de US$ 250 milhões. Em um primeiro momento, muitos acharam que era um golpe conduzido por Cotten com sua esposa, Jennifer Robertson. Outros tantos acharam que ela simplesmente havia dado um jeito de matar o marido. Aparentemente, ninguém — a não ser seus familiares — viu Jennifer como viúva. Como vítima.