Um termo gringo e de difícil pronúncia esteve nos assuntos mais comentados das redes sociais nos últimos dias: o gaslighting. A procura pelo significado da palavra aumentou depois de um Jogo da Discórdia no Big Brother Brasil 22, quando alguns internautas sugeriram que o participante Arthur Aguiar teria praticado abuso psicológico contra Laís, a eliminada desta terça-feira (22). Mas, na prática, como identificar este tipo de comportamento?
Para esclarecer dúvidas sobre o assunto, conversamos com Joanna Burigo, que estuda e trabalha com questões de gênero desde que completou seu mestrado em Gênero, Mídia e Cultura pela London School of Economics e é coordenadora da ONG Emancipa Mulher. Confira:
O que é gaslighting?
É uma forma específica de abuso psicológico, na qual o abusador distorce ou inventa informações com a intenção de fazer com que a vítima duvide da própria sanidade e da capacidade de ler a realidade. Em português, a palavra pode também ser substituída por "manipulação", mas é um jeito específico de fazer isso.
Qual a origem da palavra?
A palavra vem de uma peça de teatro, que depois virou um filme noir bem famoso do diretor George Cukor, lançado em 1944, À Meia-Luz. No longa, que originalmente se chama Gaslighting, Gregory, interpretado por Charles Boyer, é casado com Paula, vivida por Ingrid Bergman, e planeja internar a mulher como mentalmente incapaz para poder tomar conta de sua fortuna.
Para gerar essa impressão de insanidade, ele manipula as lâmpadas de gás da casa, para que balancem quando ela está sozinha. Ele usa isso como motivador para dizer que ela está maluca. É daí que a expressão vem. Acho importante fazer esse discernimento, de que a palavra tem uma origem na cultura. É uma expressão metafórica.
Pode ser praticado por qualquer pessoa?
A técnica de manipulação com o intuito de fazer com que uma pessoa questione sua própria leitura de realidade pode ser feita por qualquer sujeito. Não é um abuso exclusivo de uma ou outra relação. Não é exclusivo de gênero ou de raça. É uma relação entre pessoas. Pode ter pais que fazem gaslighting com os filhos, irmãos que fazem uns com os outros, amigos... Mas é mais comum encontrar relatos de gaslighting em relacionamentos românticos. Mas não existe um dado cientificamente comprovado de que um ou outro tipo de relacionamento produza mais ou menos interações que podem ser enquadradas como gaslighting, pode ser feito por qualquer pessoa.
Entretanto, tendo em vista, primeiramente, a origem da expressão, e tendo o conhecimento de violência de gênero nas relações heterossexuais, é bastante plausível dizer que existem bastante instâncias de gaslighting em relacionamentos deste tipo. Não é exclusivo, mas é mais comum vermos acontecer na direção de um homem para uma mulher.
Como identificar?
Existem muitos jeitos de uma pessoa fazer gaslighting com outra porque existem muitos jeitos de viver. Mas, em geral, o que qualifica é o abusador oferecer para a vítima uma perspectiva da realidade que é manipulada. Ele disputa a realidade com a pessoa. No filme, a personagem da Ingrid diz: "Mas as lâmpadas balançam", ao que ele responde: "Querida, você está imaginando, porque toda vez que eu estou aqui, elas não balançam".
O manipulador está deliberadamente produzindo uma versão da realidade com o intuito de fazer com que outra pessoa duvide de si mesma
JOANNA BURIGO
sobre gaslighting
Um dos primeiros sinais (e dos mais mais fortes) é a pessoa com quem você está interagindo estar te oferecendo informações que são contraditórias com o que você enxerga como realidade. Faz você questionar a sua sanidade. Ficar constantemente questionando se a sua leitura de mundo é genuína porque contradiz o que outra pessoa diz a seu respeito é um sinal muito forte de gaslighting. É difícil dar um exemplo específico, porque pode ser de várias maneiras. A pessoa pode dizer, por exemplo, que você não fez uma atividade que você já tenha feito.
A vítima do gaslighting costuma se sentir bastante confusa, em dúvida sobre si mesma. Se questiona sobre si, se é suficiente, constantemente justifica suas ações para as outras pessoas. Também pode ter medo de pensar e agir sozinha e estar sempre pedindo desculpas para essa pessoa (abusadora). Alguns sinais para ficar atenta na pessoa que faz o gaslighting: ela mente descaradamente, nega ou troca informações sobre a realidade, é incoerente, faz chantagem emocional, humilha. Todo o objetivo da pessoa que está fazendo o gaslighting é confundir a percepção que a vítima tem da realidade e de si mesma.
Como se proteger?
Você não tem como se proteger do que as pessoas vão fazer com você, mas você tem como estar atenta para poder identificar os sinais logo no início. Spoiler: no próprio filme Gaslighting, a personagem se dá conta de que é uma manipulação. Acontece algo que faz com que ela enxergue o que está acontecendo, mas nem sempre na vida a gente tem esse recurso. A pessoa que faz gaslighting pode até nem saber o termo gaslighting, mas sabe o que está fazendo. O abusador sabe que está manipulando, ninguém faz por acidente. O manipulador está deliberadamente produzindo uma versão da realidade com o intuito de fazer com que outra pessoa duvide de si mesma.
A única coisa que tem para fazer é sair fora da relação. É muito difícil, sobretudo quando são relações com pessoas que a gente ama (e, frequentemente, são relações com familiares, parceiros amorosos, amigos íntimos - pessoas que têm recursos, ou seja, nos conhecem o suficiente para contar uma história paralela àquela que acontece na nossa realidade a ponto de nos fazer acreditar nela). Não há nada que a vítima possa fazer para evitar que o abuso exista, mas ela pode estar atenta para identificar os sinais e sair o quanto antes da relação e se cuidar mentalmente com profissionais qualificados, que vão poder trabalhar neste trauma.