Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha se tornou referência mundial e completa 15 anos como principal aliada das mulheres contra a violência doméstica.
Conheça a história de três gaúchas que criaram coragem para denunciar seus parceiros amparadas pela legislação, buscando apoio para dar um fim às agressões e humilhações. Para garantir a segurança delas, os relatos são anônimos, e alguns detalhes das histórias foram preservados.
"Do empurrão às brigas, entendi do que ele era capaz"
"Nos conhecemos por meio de amigos em comum e engatamos um relacionamento. Ele era educado, gentil, um “gentleman”. O único ponto que me chamava atenção eram os rompantes de fúria, geralmente motivados por ciúme. Achava que era questão de imaturidade e, no fundo, acreditava que ciúme era uma demonstração de amor. Aos poucos, tudo foi virando motivo de discussão. Ele reclamava da minha roupa, dizia que eu estava paquerando outros homens, me achava “simpática demais, muito sorridente”.
Fui tentando me moldar, mas nunca era o suficiente. Parei de cumprimentar os vizinhos, mudei meu guarda-roupa, não sorria mais, entrava em pânico quando me atrasava no trabalho, corria da creche do meu filho para casa com medo de não chegar no horário combinado. Ele me trancava no quarto e me impedia de sair da casa para ser obrigada a ouvi-lo despejar todas as suas palavras chulas.
Às vezes, ocorriam os empurrões e esbarrões “sem intenção”. Dizia que eu não era boa mãe, uma esposa terrível, que não servia para ser profissional, que era um lixo. E eu acreditava em tudo, acabou com a minha autoestima. Não enxergava que vivia num relacionamento abusivo. Afinal, uma mulher pós-graduada, com situação financeira estável, independente e com rede de apoio não passa por isso, né?
Na prática, aprendi que não é verdade. Violência contra a mulher não tem classe social. O estopim se deu numa das inúmeras explosões de raiva, quando ele partiu para cima de mim. Arrancou o que eu tinha nas mãos e ameaçou jogar meu celular da janela. Acendeu o alerta e fiquei com medo: do que mais ele poderia ser capaz? Fui a uma delegacia e foi ali, lendo os cartazes, que percebi que vivia violência há anos. Me senti acolhida, entendi meus direitos pela Lei Maria da Penha e consegui medida protetiva. Foi o pontapé para dar um ponto final na relação. Não se cale."
Assistente de saúde, 42 anos
"Não enxergava os abusos psicológicos até ele me agredir fisicamente"
"Tivemos o primeiro contato por rede social. Não morávamos no mesmo lugar, mas decidimos namorar a distância. Ele era maravilhoso, carinhoso. O relacionamento engrenou e fomos viver na casa dele. Logo engravidei, e achamos melhor me dedicar aos cuidados do bebê nesse primeiro momento. Entramos em rota de colisão pouco depois porque nosso filho tinha questões de saúde e precisava de um tratamento específico. Ele não aceitava a situação, discordava dos laudos médicos e descontava a raiva em mim aos berros. O comportamento dele começou a mudar: passou a ser agressivo, discutia por tudo e me humilhava. Ele falava mal do meu corpo, dizia que eu tinha problemas mentais, que era louca.
As discussões foram se tornando mais agressivas, e eu, ficando mais intimidada. Junto disso, ele passou a exercer um controle excessivo sobre mim, principalmente na questão financeira. Se eu retirava uma quantia pequena de dinheiro no caixa eletrônico, por exemplo, ele questionava para onde ia cada centavo. Ele também passou a controlar o contato com meus familiares. Quando eu via que ele chegava perto da porta, desligava o telefone. Se ele soubesse que eu estava falando com a minha mãe, era briga na certa.
As explosões eram cada vez mais frequentes, e os xingamentos, piores ainda. Mas eu não enxergava que estava vivendo o abuso psicológico. A ficha caiu quando ele me agrediu fisicamente. Discutimos no carro por algum motivo bobo, e ele ficou enfurecido. Quando chegamos ao shopping, ele teve um ataque de fúria e me derrubou no chão. Nunca imaginei que ele iria fazer isso. Pensei: se ele tem uma atitude assim num lugar público, imagina em casa? Precisava preservar a minha vida.
Como não morava mais perto da minha família e também não estava trabalhando, apesar de sempre ter sido independente financeiramente, precisei me organizar para retornar à minha cidade com autorização dele. Eu não tinha uma conta bancária separada. Foram seis meses até eu sair de casa e romper definitivamente depois de sete anos de relação. Mas o ciclo de violência não acabou. Ele me perseguia, aparecia sem avisar, fazia ameaças a mim, à minha família, e fazia escândalos na frente do prédio. Uma vez, apareceu no trajeto da escola do nosso filho. Fiquei com medo que ele fizesse algo com a criança ou comigo.
Ele falava mal do meu corpo, dizia que eu tinha problemas mentais, que era louca. As discussões foram se tornando mais agressivas, e eu, ficando mais intimidada.
Fui numa delegacia da mulher pela primeira vez e registrei ocorrência. Entendi meus direitos e ganhei a medida protetiva. Foi um alívio, me senti segura. Hoje, participo de um grupo de apoio e tento retomar a vida."
Professora, 49 anos
"Ele ameaçava ameaçar fogo na casa e me estrangular"
"Fomos apresentados por uma amiga e começamos a sair. Ele era amoroso, um profissional renomado, prestativo, me buscava na faculdade, me pegava no trabalho. Notei que era um pouco ciumento. Era comum ligar 10, 20 vezes por dia só para saber onde eu estava. Achava exagerado, mas não enxerguei como um sinal de alerta, entendia que era por amor. Decidimos morar juntos, foi aí que percebi que ele andava abusando na bebida e usava drogas de vez em quando. Pensei em me separar, só que engravidei. Queríamos muito um filho, e acabei acreditando que ele iria mudar. Combinamos que me focaria nos cuidados do nosso filho, e parei de trabalhar. E ele passou a usar a parte financeira para me controlar. Mudamos para uma casa mais afastada da cidade, fiquei sem carro, sem dinheiro.
Ele controlava a minha roupa, reclamava do batom. Sabia o que era um relacionamento abusivo, mas, quando estamos mergulhadas na situação, é como se estivéssemos cegas
Ele passou a beber novamente e ficou cada vez mais agressivo. Uma vez, eu queria sair da casa e ele me segurou forte pelo braço. Ficou tão roxo que as pessoas notaram. Ali, a minha ficha começou a cair. Mas, mesmo assim, culpava a bebida e acreditava quando ele pedia desculpas. No fundo, queria salvar a família e não enxergava a violência. A situação se agravou mais, até que criei coragem e pedi a separação. Ele me ameaçou dizendo que colocaria fogo na casa com a gente dentro. Numa das discussões, tentou me estrangular. Pela primeira vez, achei que ele ia me matar. Consegui fugir e fui para a delegacia, fiz ocorrência e ganhei a medida protetiva pela Lei Maria da Penha.
Na audiência, percebi o que vivia. Ele controlava a minha roupa, reclamava do batom. Sabia o que era um relacionamento abusivo, mas, quando estamos mergulhadas na situação, é como se estivéssemos cegas. Ir à delegacia foi o primeiro passo. Busquei grupos de apoio, voltei a trabalhar, mudei de cidade e hoje tento reestruturar a minha vida." Administradora, 43 anos