A Sala Redenção, localizada no Campus Central da UFRGS, em Porto Alegre, vai exibir nesta quinta-feira (7) aquele que é considerado o melhor filme brasileiro de todos os tempos: Limite (1931), o único longa-metragem realizado pelo diretor Mário Peixoto (1908-1992).
Quem definiu essa condição foi a Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Abraccine, que em 2015 elaborou um ranking com as 100 melhores produções nacionais. Participaram da votação 100 críticos e jornalistas especializados. No top 10, abaixo de Limite, ficaram Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, São Paulo S/A (1965), de Luís Sérgio Person, Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, e Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. A lista não se limitou aos longas, com Ilha das Flores (1989) sendo o curta mais votado, ocupando a 13ª colocação — o premiado filme de Jorge Furtado é o único representante gaúcho no levantamento.
A sessão de quinta-feira faz parte de uma mostra intitulada A Céu Aberto (veja mais abaixo outros destaques da programação). Está marcada para as 19h e tem entrada franca — vale avisar: a capacidade da Sala Redenção é de apenas 87 espectadores, que devem usar máscara e apresentar o comprovante (físico ou digital) de vacinação contra a covid-19.
Com duas horas de duração, Limite é o filme mudo mais falado da história do Brasil. Exibido pela primeira vez em 17 de maio de 1931, no Cinema Capitólio do Rio de Janeiro, nunca estreou comercialmente. A sessão acabou em bate-boca e empurra-empurra entre defensores estupefatos e detratores entediados.
Uns adoraram o experimentalismo narrativo, o rigor técnico e a poesia da fotografia em preto-e-branco de Edgar Brasil — Limite é a versão tropical do expressionismo alemão (de títulos como O Gabinete do Dr. Caligari, de 1920, Nosferatu, de 1922, e Sombras, de 1923) e da vanguarda soviética (O Encouraçado Potemkin de 1925, A Mãe, de 1926, Um Homem com uma Câmera, de 1929).
Outros cochilaram diante da lenta e não-linear trama sobre duas mulheres (interpretadas por Olga Breno e Taciana Rei) e um homem (Raul Schnoor) num barco à deriva. Na embarcação, os personagens relembram seu passado recente. Uma das mulheres escapou da prisão; a outra estava desesperada; e o homem tinha perdido sua amante.
Há toda uma mitologia em torno de Limite, que se tornou objeto de estudos e documentários. Em artigo publicado por ZH em 13 de maio de 2006, o professor de Literatura Michael Korfmann, que desenvolveu o site mariopeixoto.com e editou o livro Ten Contemporary Views on Mario Peixoto's Limite, lembrou que o filme esteve desaparecido entre 1958 e 1978, quando foi resgatado, em um longo processo restaurativo, por Plínio Süssekind Rocha, assistido por Saulo Pereira de Mello. "Limite tornou-se um marco cinematográfico e cultural com traços lendários: é descrito como a obra-prima desconhecida pelo historiador de cinema Georges Sadoul, que, em 1960, fez uma viagem malsucedida para o Rio de Janeiro para assistir ao filme", conta Korfmann. "Em 1965, surge, na revista brasileira Arquitetura, volume 38, um artigo supostamente escrito por Sergei Eisenstein, analisando e elogiando o filme, com o título Um Filme da América do Sul— um excelente texto, mas que foi, na verdade, escrito pelo próprio Mário Peixoto".
Apesar de indisponível ao longo de duas décadas, Limite seguiu sendo referência para discussões e declarações controversas (houve quem até duvidasse da existência do filme). Para o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), Peixoto estava "longe da realidade e da história" e era "incapaz de compreender as contradições da sociedade burguesa". "Nos seus esforços de fundar uma tradição da história do cinema brasileiro a ser continuada por seu Cinema Novo", escreveu Korfmann, "Glauber implantou a infeliz ruptura entre Mário Peixoto e Humberto Mauro, transformando Ganga Bruta (1933), de Mauro, em uma referência absoluta de seu Cinema Novo e rejeitando Limite (sem tê-lo visto) como um trabalho puramente estético e, assim, condenável".
Entre os entusiastas de Mário Peixoto, está o diretor e produtor Walter Salles, de Central do Brasil (1998). Em 1996, ele fundou o Arquivo Mário Peixoto, no Rio. No filme Abril Despedaçado (2001), o protagonista se chama Breves, em alusão ao nome completo de Peixoto, Mário Rodrigues Breves Peixoto, e a questão do tempo é tema central, como em Limite.
O pesquisador Denilson Lopes, professor associado na UFRJ, lançou em 2021 o e-book Mário Peixoto Antes e Depois de "Limite". A obra é composta por três ensaios: o primeiro é focado na infância, o segundo, no período em que Peixoto viveu no Reino Unido (entre 1926 e 1927), e o terceiro, na sua correspondência com o escritor Octávio de Faria (1908-1980).
Outra homenagem é o documentário Onde a Terra Acaba (2001), de Sérgio Machado, vencedor de prêmios nos festivais de Havana, Gramado, Recife e Rio e na Mostra Internacional de São Paulo. O título é o mesmo da obra que Peixoto realizaria logo após seu clássico, por encomenda da atriz Carmen Santos, mas cujas filmagens nunca foram concluídas.
Onde a Terra Acaba traz depoimentos fantásticos do próprio Peixoto, colhidos por Ruy Solberg para outro trabalho, O Homem do Morcego (numa referência à Ilha do Morcego, local do litoral fluminense onde o diretor se exilou). Conta com a participação de Walter Salles e apresenta imagens raras, como os bastidores de Limite e fragmentos inéditos do único rolo do inacabado filme.
Esses depoimentos e os trechos extraídos de diários e cartas de Peixoto — narrados pelo ator Matheus Nachtergaele — revelam um homem extremamente perfeccionista. O documentário destaca também o inventivo trabalho do fotógrafo de Limite, Edgar Brasil, e os truques usados para conseguir efeitos visuais surpreendentes para a época.
O que nos leva de volta ao artigo de Michael Korfmann, que se encerra assim: "Para uma aproximação a Limite, conceitos como fluidez e continuidade podem servir de referência, não tanto em relação a seu conceito estrutural, baseado sobretudo na variação e não na continuação como princípio fílmico principal, mas em relação à ambição filosófica implícita: a oscilação entre a corrente de memória fluida e objetos e episódios sólidos e concretos que emergem fixos na continuidade do tempo. Esse propósito é claramente formulado no artigo de Peixoto Um Filme da América do Sul — o mesmo por muito tempo atribuído a Eisenstein. Aqui, Peixoto enfatiza, primeiro, o papel do 'cérebro-câmera' e da estrutura 'instintivamente ritmo' de Limite e, então, define o filme como em algum lugar entre uma obra de arte 'singular', notável, e um objeto 'anônimo em inexpressivas multidões'. Para Peixoto, a experiência oferecida por Limite não pode ser adequadamente capturada pela linguagem, mas foi feita para ser sentida. Portanto, o espectador deve se subjugar às imagens como 'angustiantes acordes de uma sintética e pura linguagem de cinema'".
Programação da mostra A Céu Aberto
Sessões na Sala Redenção, no Campus Central da UFRGS (Av. Paulo Gama, 110), com entrada franca
- Depois do Vendaval (1952), de John Ford: dia 6/4, às 19h, e dia 11/4, às 15h
- Um Barco e Nove Destinos (1944), de Alfred Hitchcock: dia 7/4, às 15h, e dia 13/4, às 19h
- Limite (1931), de Mário Peixoto: dia 7/4, às 19h
- Nuhu Yãg Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa! (2020), de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero: dia 8/4, às 15h, e dia 14/4, às 19h
- A General (1926), de Buster Keaton: dia 8/4, às 19h, e dia 12/4, às 15h
- Virtude Selvagem (1946), de Clarence Brown: dia 11/4, às 19h
- O Demônio das Onze Horas (1965), de Jean-Luc Godard: dia 13/4, às 15h
- A Longa Caminhada (1971), de Nicolas Roeg: dia 14/4, às 15h
- Na Natureza Selvagem (2007), de Sean Penn: dia 15/4, às 15h
- Conto de Verão (1996), de Éric Rohmer: dia 15/4, às 19h