Diretor de Limite (1931), eleito pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) o melhor filme nacional já realizado, Mário Peixoto (1908-1992) é um daqueles casos fascinantes de personalidade sobre a qual já se sabe bastante, porém, paradoxalmente, muito ainda parece estar escondido. Limite não tem pares em seu tempo, assim como Peixoto, um dândi discreto e cosmopolita pouco afeito aos círculos intelectuais militantes do modernismo. A figura do cineasta – e também escritor – foi fundamental para o processo de mitificação do filme, o único que ele conseguiu concluir em vida.
Professor associado na UFRJ, o pesquisador Denilson Lopes se debruçou sobre essa figura, particularmente sobre a sua homossexualidade, como escreve, “muitas vezes dita, mas pouco estudada”, em uma “busca ansiosa de um espelho do passado em que possamos nos ver”. Seria possível atualizar o passado a partir de um olhar queer, relativamente novo no campo da História? É a intenção de Lopes, que segue trabalhando com esse objetivo, mas já apresenta resultados de sua pesquisa no recém-lançado e-book Mário Peixoto Antes e Depois de Limite.
O livro é composto de três ensaios, o primeiro focado na infância, o segundo, no período em que Peixoto viveu no Reino Unido (entre 1926 e 1927) e o terceiro na sua correspondência com o escritor Octávio de Faria (1908-1980). A base do trabalho são cartas e também diários do Arquivo Mário Peixoto, os de infância recentemente digitalizados, com atenção especial, percebe-se pelo texto do livro, às fotografias, não por acaso “espaços privilegiados de uma expressão queer, homoerótica, no modernismo”, explica o autor. As fotos com dois amigos japoneses, por exemplo, ajudam a entender a expressividade corporal que incomodava o próprio Peixoto e que foi importante para o seu rompimento com a família, incomodada, indica Lopes, com aqueles registros da aproximação física entre os amigos.
O encontro entre Lopes e Peixoto é afetivo – como o foram os encontros do autor com os filmes aos quais se dedicou no livro anterior, Afetos, Experiências e Encontros com Filmes Brasileiros Contemporâneos (Hucitec, 2016). O formato de ensaio biográfico lhe dá liberdade para comentar, fazer associações e desprender-se de rigores usuais em pesquisas historiográficas mais convencionais e em biografias cujos textos seguem o padrão do jornalismo.
Lopes se coloca muitas vezes em dúvida, dividindo questionamentos com o leitor, como se o convidasse a compartilhar a visita à intimidade de Peixoto. Observa os documentos e imagina, conjectura, em um método ao mesmo tempo livre e responsável de arqueologia da subjetividade do biografado. A afirmação só existe quando se tem certeza daquilo que o biografado falou ou daquilo que o motivou em seus atos e gestos.
Essa construção é obviamente única – será tão diferente quanto o for o pesquisador que lançar seu olhar ao passado. E pode, sempre, ser atualizada, como quer Lopes, agora ou no futuro, a partir de cada interpretação realizada. Seu trabalho enriquece a memória de Peixoto para além de Limite – como o mítico cineasta e escritor de fato merece.