O que aconteceu com o Brasil entre o início e o fim da década de 2010? Até o mais desavisado entre aqueles que se propuserem a discorrer sobre essa questão sabe que as respostas à pergunta podem ser muitas. Mesmo limitando-se a um campo fechado, como o cinema, persistirão as múltiplas possibilidades de reflexão. Que filmes explicam o país do período? Incontáveis. Foram anos de grandes produções audiovisuais, desveladoras de riquezas e contradições sociais, expressões de angústias e alegrias significativas, particulares e coletivas, com uma prolificidade raras vezes vista.
A obra de Kleber Mendonça Filho, nesse universo, é das mais potentes. Um olhar que percorre O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019) encontra refletidas em suas imagens representações marcantes daquilo que ocorre fora da tela, na vizinhança visível ou invisibilizada, esteja ela no Nordeste, onde se passam as tramas desses três longas-metragens que o cineasta realizou no período, ou no Sul, onde este breve comentário está sendo escrito. No recém-lançado livro Três Roteiros: O Som ao Redor, Aquarius, Bacurau (Cia. das Letras), Mendonça Filho apresenta os textos que originaram os filmes, precedidos de um ensaio do decano da crítica brasileira Ismail Xavier e de uma introdução na qual o próprio diretor e roteirista, olhando em perspectiva para seu processo criativo, experimenta essa análise. “Os três filmes são frutos inevitáveis e indissociáveis do país”, ele escreve. “São retratos brasileiros.”
É particularmente notável que essa revisão realizada por Mendonça Filho tome como ponto de partida a violência que perpassa as três narrativas, destacando a “subida de tom”, segundo suas palavras, que esse tema foi tendo a cada nova produção. Sob vários aspectos, o Brasil de 2012 era menos violento do que o de 2016, que por sua vez era menos violento do que o de 2019. Embora, de algum modo, a semente do que vemos hoje tenha sido regada lá atrás – como Mendonça Filho também destaca, chamando a atenção para um episódio registrado nas filmagens de Aquarius, quando um motorista passou pela equipe, na rua, e, pela janela do carro, despejou xingamentos da ordem do “vão trabalhar, artistas vagabundos”.
O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau são verdadeiros orgulhos nacionais, assinados por um dos mais relevantes artistas do país hoje, entre outras razões por conseguirem mostrar o Brasil que nem sempre (ou nem todos) conseguimos ver. É fundamental, por isso, que a fortuna crítica e acadêmica sobre os três filmes seja robusta. E é nesse sentido que o livro traz enorme contribuição.
Os três roteiros são apresentados na íntegra, conforme seu estado antes das filmagens. A leitura, para quem assistiu aos longas, tem esse sabor adicional: permite comparar as imagens conforme vislumbradas no início do processo criativo com aquilo que efetivamente pôde ser visto depois, na tela. E assim compreender como certos temas ou comentários apareciam originalmente e como acabaram ficando, se é que ficaram, depois.
Há, por exemplo, toda uma sequência final de Aquarius, um epílogo formado por seis cenas, que foram escritas mas que não estão no filme. Seus acontecimentos estão situados cinco anos após o que fora narrado anteriormente, quando a protagonista Clara (Sonia Braga) já está morta. A pauta é o que seria o seu “legado”. Provavelmente dando-se conta de que aquilo já está claro nas sequências prévias, autor e equipe desistiram desse trecho no set – ou na montagem, o artigo introdutório não esclarece plenamente.
Mas a escrita do cineasta é limpa e fluida. Como texto, o epílogo funciona. E faz o leitor-espectador pensar sobre a diferença de fruição do filme em si e do roteiro que o originou – funcionaria na tela, também? Ler não é ver, embora cinema, além de imagem, seja também palavra. A autoria está diretamente vinculada à encenação, porém, o argumento inicial e seu desenvolvimento, no papel, antes de se transformar efetivamente em audiovisual, são fundamentais. São partes de um processo, e cinema é processo, ainda que novas tecnologias e o desprendimento de alguns cineastas, sobretudo os mais jovens, permitam abreviar certas fases de uma produção.
A leitura do roteiro permite conhecer fases em geral secretas desse processo. Quando se trata de filmes que ajudam a revelar a alma de um país, como O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau, então, o ganho do público é muito significativo.