A Shakespeare and Company, uma das mais icônicas livrarias do mundo, precisou apelar ao coração e ao bolso dos leitores no final do último ano. Em uma mensagem aos seus clientes, a centenária instituição pediu a quem pudesse que encomendasse livros. Foram milhares de pedidos apenas na primeira semana, e as ruas de Paris não perderam o ponto de encontro que um dia acolheu escritores como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald.
O pedido veio logo depois da Strand, nas ruas de Nova York, anunciar: "Nós não vamos sobreviver". A Grande Depressão, duas guerras mundiais e a ascensão do e-commerce não foram capazes de derrubar a livraria de três andares, na 4ª Avenida, mas o coronavírus talvez conseguisse. Leitores, então, responderam ao chamado e foram feitos mais de 25 mil pedidos no site da loja em dois dias. As estantes que serviram de cenário para obras como Sex and the City, The Romanoffs e, recentemente, Dash & Lily, seguirão de pé.
Agora, são dois estabelecimentos das ruas de Porto Alegre que pedem socorro. A Livraria Baleia (Rua Cel. Fernando Machado, 85), que lançou uma campanha de financiamento coletivo no Catarse, e a Livraria Taverna (Rua dos Andradas, 736), que abriu uma campanha na plataforma Apoia-se. E elas desejam o mesmo que suas irmãs ilustres em Paris e Nova York: vender livros.
Um desejo simples, porém não uma tarefa fácil no Brasil de 2021. A segunda onda de covid-19 no país — um tsunami no Rio Grande do Sul — levou à queda de 73% na venda de exemplares de livrarias físicas em março, segundo levantamento do Yandeh, encomendado pelo PublishNews. E a queda veio comparada ao início deste ano, em um cenário já marcado por pandemia e crise econômica.
Foi a gota d'água para os estabelecimentos, que há meses seguiam apenas remando, remanejando vencimentos com fornecedores, buscando empréstimos, apostando em iniciativas online, ao mesmo tempo em que travam uma luta de Davi e Golias contra as grandes redes. Só que, em vez de desistir, as livrarias decidiram se reinventar.
Amanhecer na Taverna
Quando a pandemia ainda dava seus primeiros passos em terras brasileiras, a Livraria Taverna foi notícia por um fato insólito: uma cliente decidiu ajudar o estabelecimento a pagar pelo aluguel atrasado. Era março de 2020 e os donos do local já alertavam que o coronavírus poderia pôr um ponto final na história do espaço.
Entre trancos e barrancos, contudo, os impactos da covid-19 não foram tão sentidos. A situação não era ideal, mas também não era catastrófica. Até que março de 2021 chegou.
— Com o decreto de bandeira preta no Estado, em que fechamos a livraria, fomos surpreendidos com uma queda muito grande — narra Ederson Lopes, sócio da Taverna. — Veja que no ano passado a gente anunciou que iria fechar, que estávamos preocupados, mas imediatamente conseguimos converter todas as vendas da loja para o nosso site. Então, ficamos bastante surpresos com essa queda de março (deste ano).
Com as luzes de emergência ligadas, foi hora de se voltar a quem ajudou o estabelecimento no passado: clientes, parceiros, professores, escritores, amigos. Desta vez, no entanto, o socorro foi planejado e revolve ao redor do que a Taverna mais entende: a comercialização dos livros.
— É praticamente uma compra antecipada — destaca Ederson sobre o financiamento coletivo.
Disponível em apoia.se/livrariataverna, a campanha prevê a distribuição de exemplares para os apoiadores, em um sistema similar ao dos clubes de assinatura, com títulos surpresa. As contribuições partem de R$ 20, mas para receber um livro em casa é preciso ajudar com pelo menos R$ 35.
Parece ter sido uma estratégia certeira: no ar desde 13 de abril, a campanha alcançou 45,7% da meta de arrecadação apenas na primeira semana. A ideia é que o valor total cubra as despesas fixas da loja, como aluguel, luz, internet, folha de pagamento. Ou seja: será possível tornar-se um apoiador a qualquer momento, visto que é uma campanha contínua.
Além disso, a iniciativa não interfere nos negócios tradicionais da livraria, que segue com a sua loja virtual em livrariataverna.com.br. Residentes de Porto Alegre, inclusive, recebem os pedidos via motoboy, com hora marcada.
Nadando contra a maré
A meio quilômetro de distância da Taverna — cerca de oito minutos de caminhada —, a Livraria Baleia passou por experiências similares nos últimos meses.
— Mesmo com a queda brutal de faturamento em 2020, a gente conseguiu segurar as pontas. Fechamos o ano com algumas dívidas, né? Mas tudo devidamente negociado — conta Nanni Rios, proprietária do local. — Entrou em 2021, a situação piorou. Eu acho que teve uma baixa significativa de vibe, sabe? Teve uma baixa significativa de esperança. É essa a minha interpretação. Por mais etéreo que isso seja.
Fevereiro e março foram os dois piores meses da história da livraria, e o próprio salário da equipe não foi coberto. Nanni, que já havia aberto mão de seu próprio rendimento em momentos anteriores, decidiu que a situação era insustentável. Nasceu então o Catarse. "Quem é do mar não enjoa", anuncia com certo humor a campanha.
— Relutei muito em pedir ajuda — revela a livreira, que não gostaria de aparentar estar "fazendo drama". — Mas aí eu consegui encontrar o tom e acho que a gente lançou uma campanha de Catarse muito propositiva. Criamos cartões-postais, adesivos, ecobags, uma série de coisas, e isso me entusiasmou muito para lançar.
O entusiasmo foi igual do outro lado do balcão. Criada em 12 de abril, a campanha já ultrapassa 20% da meta apenas uma semana mais tarde, com apoiadores dentro e fora do Rio Grande do Sul. Enquanto isso, aqueles que não puderam ajudar financeiramente fizeram questão de compartilhar o Catarse em suas redes sociais, e os que podiam contribuir mais, como autores amigos da livraria, decidiram fazer parte de novas recompensas. E ainda não acabou: a iniciativa segue aberta até o dia 22 de maio.
É possível apoiar a Baleia com contribuições a partir de R$ 30 em catarse.me/livrariabaleia. Além dos brindes especiais, que levam a temática das criaturas marinhas (como baleia-franca, baleia-jubarte e baleia-azul), há parcerias com autoras como Manuela D'Ávila e Adelaide Ivánova. O estabelecimento também recebe pedidos diretamente em seu site, livrariabaleia.com.br, e oferece um clube de assinatura com cinco linhas diferentes: ficção, não-ficção, poesia, feminismo e livro do mês.
Proximidade com o público
Resistir não é uma palavra nova no vocabulário das livrarias de rua. A Taverna, que chegou às calçadas porto-alegrenses em 2016 (depois de ser fundada em 2014 como loja virtual, com bancas em diferentes eventos), nasceu já em meio a uma crise econômica e à concorrência das megastores. A Baleia, da mesma época, não enfrentou mares muito melhores. Mas a pandemia, como mostram os casos da Shakespeare and Company e Strand, ferem até os maiores estabelecimentos desse tipo em sua essência: a proximidade com o público.
Enquanto a Taverna calcula que as perdas por deixar de sediar eventos, como lançamentos, sessões de autógrafos e saraus, ficou entre 20% e 30% no último ano, na Baleia a cifra representou metade do faturamento. Promover aglomerações literárias, seja com cursos, bate-papos ou palestras, era a especialidade destes estabelecimentos, afinal.
— Sempre que a gente podia reunir gente na livraria, tinha venda — aponta Nanni.
Mais do que isso, criavam-se laços entre leitores e livreiros capazes de dar ao setor uma chance, em um mercado cada vez mais dominado por gigantes, principalmente a Amazon. Se é impossível aos pequenos empreendimentos competir com o preço praticado pelo e-commerce, que tem seus próprios acordos com as editoras, era possível ao menos ganhar o público com o atendimento personalizado e a programação cultural.
— A livraria é um espaço de acolhimento, de encontro, onde as pessoas adquirem conhecimento, conversam, onde é o espaço para o debate, onde tem eventos culturais — defende Ederson. — A livraria ocupa um espaço bastante importante tanto para o seu entorno quanto para a cidade.
Dito tudo isso, é com perplexidade que os livreiros acompanham a volta de conversas sobre a possível perda da isenção tributária de livros no Brasil. Somada à pandemia, à crise econômica e ao distanciamento dos leitores, a taxação seria um novo fardo para o setor, sem contar o que representaria para os consumidores das classes C e D — segundo a 5ª edição da Retratos da Leitura do Brasil, por sinal, há compradores de livros em todas as classes sociais, incluindo aquelas com renda familiar inferior a um salário mínimo.
— O livro deveria ser incentivado. É uma questão muito mais simbólica do que tributária — reflete Nanni. — A gente deveria ter incentivo. As livrarias de rua deveriam ter incentivo do Estado para manter a sua programação gratuita funcionando. O Estado, por meio dos seus órgãos de cultura, Secretaria de Cultura, Ministério da Cultura, que tem muita grana para fazer e não faz tudo que poderia, nem se quisesse iria fazer tanto quanto seria feito se as livrarias fossem encaradas como pontos de cultura.
Como ajudar as livrarias de rua de Porto Alegre
- A campanha da Livraria Baleia está disponível em catarse.me/livrariabaleia, com opções de contribuição entre R$ 30 e R$ 1 mil (o valor alto corresponde à doação de livros para uma biblioteca comunitária no Rio Grande do Sul)
- A campanha da Livraria Taverna está disponível em apoia.se/livrariataverna, com opções de contribuição entre R$ 20 e R$ 500