Muita gente estranhou quando o ministro Paulo Guedes afirmou publicamente que livro é um “produto de elite”. A estudante Aghata Lima Costa foi uma delas. Moradora da Lomba do Pinheiro, filha de um instalador de internet e de uma cabeleireira, tem 17 anos e não pertence a um estrato social privilegiado. Nem por isso deixa de montar, aos poucos, sua biblioteca – que já conta com mais 40 volumes, protegidos em uma estante do quarto que divide com o irmão de 13 anos.
– Sempre peço livros no meu aniversário e em outras datas comemorativas. Também ganhei há pouco um livro em um concurso do colégio. Mas sei que sou exceção. A maioria dos meus colegas só “leva os livros para passear”, como diz minha professora – admite a estudante.
De fato, Aghata faz parte de um grupo reduzido de leitores. Segundo a edição mais recente da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2016, 74% dos entrevistados afirmaram não ter comprado um único livro nos últimos três meses. E 30% nunca compraram um livro na vida. Entre os compradores, apenas 13% são das classes D e E.
A reforma tributária proposta pelo Ministério da Economia quer acabar com um benefício que reduz o custo na produção de livros. Atualmente, o mercado editorial está isento de pagar PIS e Cofins. Se aprovada a reforma, o governo passará a arrecadar sobre a receita das editoras. As contribuições federais serão substituídas pela Contribuição Sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12%. Por conta do suposto “elitismo” da leitura, Guedes aponta que não há necessidade de criação de benefício do setor sobre a CBS.
Quando questionado sobre a proposta pelo deputado Marcelo Freixo, durante uma reunião mista sobre a proposta de reforma, Guedes respondeu:
– Vamos dar o livro de graça para o mais frágil, para o mais pobre, e não isentar o deputado Marcelo Freixo, que pode muito bem pagar um livro. Nós não precisamos de isentá-lo para ele comprar o livro dele. Eu também, quando compro meu livro, preciso pagar meu imposto. Então, uma coisa é você focalizar a ajuda. A outra coisa é você, a título de ajudar os mais pobres, na verdade, isentar gente que pode pagar.
Editores consultados por GZH avaliam que, para manter as contas em dia, a nova alíquota precisará ser repassada aos consumidores. Dessa forma, o valor final dos livros deve subir pelo menos 12% – mas há quem acredite que o aumento pode chegar a 20%.
– As margens do mercado estão muito apertadas. Proporcionalmente a outros produtos, o preço do livro caiu muito de 2016 para cá. Não há espaço para inserir esse tributo no valor atual. Além disso, há prognósticos que apontam que, se o consumo diminuir por conta do preço mais alto, o volume das tiragens ficará menor, o que pode encarecer ainda mais o preço final de cada exemplar – explica Gustava Faraon, sócio da editora Dublinense.
A possível alta nos preços preocupa quem é especialista em formação de leitores, pois pode tornar ainda mais raro consumidores de literatura menos privilegiados economicamente – como Aghata, por exemplo. Ana Paula Cecato, professora do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) que há 10 anos trabalha com projetos de estímulo à leitura, avalia que a alta pode afastar mais ainda a literatura da população carente:
– Estamos vivendo um período em que vários programas e projetos de incentivo à leitura estão sendo descaracterizados ou até mesmo descontinuados. Essa taxação certamente afetaria essas iniciativas, pois, além da questão monetária, há a questão simbólica. Em algumas famílias, perpassa um imaginário social que não valoriza o livro como um produto comercial.
Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), considera que a taxação representaria um retrocesso social e econômico:
– Se o projeto de lei da CBS passar e taxar o livro, quem vai pagar caro é o Brasil. Estamos afundados em um momento de crise e falta de perspectiva. Os livros são justamente veículos para nos projetar além dessa realidade, para encontrar meios de superá-la. Possibilitam a transformação na vida de muitas pessoas.
Aghata teve sua vida transformada pela literatura. Graças aos livros, passou a sonhar com o diploma no Ensino Superior, inédito em sua família.
– Quero ser professora e também trabalhar com escrita – afirma a estudante.
Mas não foi apenas no campo profissional que os livros operaram grandes mudanças para Aghata.
– A leitura entrou na minha vida também por causa da depressão. Foi uma forma de esquecer a dor psicológica. Sou filha por adoção. Tive uma infância bem difícil. Por isso, sempre gostei de ler. A leitura me faz viajar – conta a jovem.
A geladeira da literatura
Na Vila Fátima Pinto, em outra zona periférica de Porto Alegre, o ator Alex Pantera trabalha cotidianamente na formação de leitores, deixando sempre abastecida Geladeiroteca. Trata-se de uma carcaça de geladeira transformada em biblioteca e estrategicamente instalada no final da linha do ônibus Bom Jesus, em frente a uma farmácia, ao lado de um supermercado e no caminho para quatro escolas da região.
O projeto nasceu quando Pantera resolveu doar livros que tinha em casa, mas não queria que os exemplares ficassem restritos às quatro paredes de uma instituição. Conseguiu uma geladeira antiga por meio de doação, pediu a um amigo para grafitar a peça e lá deixou 30 livros de seu acervo. Hoje, segundo o ator, mais de 300 volumes circulam na comunidade por meio da ação.
– Dizer que livro é coisa de rico é uma falácia – avalia Pantera. – Tenho pelo menos 20 leitores assíduos, com quem troco mensagens e aviso sempre que consigo algum livro que pode interessar. Há poucos dias, recebi Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, por exemplo, e repassei a uma estudante de História, que gostaria de ler, mas que não tem dinheiro para comprar. Outra já havia lido O Inferno, do Dan Brown. Quando recebi O Código Da Vinci, lembrei que ela poderia completar a leitura – exemplifica.
Com menos de dois anos, a iniciativa está sendo ampliada, com visita a escolas e a promoção de oficinas.
– Quero que a Geladeiroteca tenha textos da própria comunidade, para o pessoal que mora aqui se identificar, sentir-se representado – afirma Pantera.
Para Ana Paula Cecato, representatividade é um dos pilares na formação de leitores:
– Um dos elementos que constituem a experiência com o livro e a literatura é o acervo. Para que as escolhas sejam feitas, é preciso uma curadoria que leve em conta critérios como a qualidade dos projetos editoriais e literários, a representatividade da diversidade étnico-racial, de gênero e de inclusão, e o respeito à inteligência e à sensibilidade dos leitores.
Por conta da importância do acervo, a fala de Paulo Guedes em relação à prática de doações preocupa quem trabalha no setor.
– Afinal, que livros são esses que o ministro quer doar? – questiona Bernardo Gurbanov. – Restringir a leitura dos mais pobres às doações é mediar, direcionar, controlar. Por trás desse discurso, há um pensamento assistencialista, que não encara a leitura como formação de cidadania. É preciso garantir ao cidadão a possibilidade de escolher suas leituras – diz.
Uma das colaboradoras – e também assídua consumidora – da Geladeiroteca é a escritora Fátima Farias. Depois de participar de coletâneas, ela lançou seu primeiro livro solo em março, intitulado Mel e Dendê (editora Libretos). Para Fátima, a identificação étnico-racial com outros escritores foi fundamental para a consolidação de sua criação literária.
A autora ganha vida como cozinheira e cresceu instigada pelas letras por causa do pai, que ocasionalmente trazia para casa revistas e livros.
– Meu pai era instalador hidráulico. Ele trabalhava na casa dos ricos e, de lá, trazia revistas e outros materiais de leitura. Também gostava de música e era um grande contador de histórias. Assim que aprendi a ler, eu queria ler de tudo. Saía de casa para ler o que encontrasse pela frente, fosse um jornal ou uma placa de trânsito – relembra Fátima.
Fátima cresceu lendo os clássicos da literatura brasileira. Há cerca de 10 anos, passou a publicar seus textos na internet. Em 2012, recebeu um convite que mudou sua vida. Foi chamada para participar do sarau Sopapo Poético, que reúne mensalmente leitores para declamar e debater a produção de autores negros.
– Postei uma poesia no meu mural, e um dos organizadores do Sopapo Poético leu e me chamou para o sarau. Ele começou e me explicar o que é e a me enviar foto. Fiquei maravilhada. Comecei a ver aquele monte de gente preta, gente linda, com seus livros na mão, lendo nossos versos, nossas histórias. Coisa mais linda – relembra ela.
Foi nesse ambiente que conheceu a obra de autores negros como Oliveira Silveira (1941-2009), Cruz e Souza (1861-1898) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977)
– A mulher que sou hoje tem características da Carolina Maria de Jesus, por ela me fazer sentir escritora. E de Oliveira Silveira, por sua obra fortalecer em mim que também sou dona dessa terra, desse pedaço de chão gaúcho, do qual não sentia parte antes – explica Fátima.
Alex Pantera, que não foi apresentado à literatura na infância, lamenta hoje não ter se tornado um grande leitor. Porém, transforma a frustração em estímulo: oportuniza aos mais jovens um contato que não teve em seus anos de formação:
– Comecei a ler aos 20 anos, quando servi ao Exército. Foi quando me inseri em uma instituição, em um espaço que tinha uma biblioteca. Fui criado por uma avó analfabeta e uma mãe letrada, mas que tinha que passar a maior parte do tempo na cozinha dos patrões, sem muito espaço para a leitura. Se a literatura tivesse sido apresentada a mim quando eu era criança ou adolescente, talvez hoje eu tivesse uma relação mais íntima com os livros. É o que tento oferecer para as novas gerações por meio da Geladeiroteca.