Disponível para compra ou aluguel em Apple TV, Claro Now, Google Play, Vivo Play e YouTube, o documentário indicado ao Oscar Escrevendo com Fogo começa explicando, em um letreiro, o sistema de castas da Índia. Surgida há mais de 3,5 mil anos, a estratificação social divide a população nesta ordem: brâmanes (sacerdotes e letrados), que nasceram da cabeça do deus Brahma; xátrias (guerreiros), que nasceram dos braços; vaixás (comerciantes), que nasceram das pernas; e sudras (servos: camponeses, artesãos e operários), que nasceram dos pés.
À margem, sequer considerados como casta nessa hierarquia, estão os dalits, que vieram da poeira debaixo do pé da divindade hindu. São os párias, os impuros, os intocáveis. "Mulheres sofrem mais", informa o filme dirigido por Rintu Thomas e Sushmit Ghosh.
São dalits as editoras e repórteres do Khabar Lahariya, único veículo de comunicação indiano com comando feminino. Foi fundado em maio de 2002, com sede no Estado mais populoso do país, Uttar Pradesh, situado ao norte e notório pelos crimes contra as mulheres.
No início do documentário, Meera Devi, repórter-chefe do Khabar Lahariya, está em trabalho de apuração. Na companhia do marido, uma mulher enumera os dias do mês de janeiro nos quais foi estuprada por homens que invadiram sua casa quando ela estava sozinha: 10, 16, 18, 19... A polícia não quis abrir inquérito, diz o casal. Na delegacia, um oficial afirma a Meera que desconhece o caso. (Consta que apenas um a cada quatro denúncias termina em condenação na Índia, país que costuma chocar o mundo com episódios de estupro coletivo, conforme visto no filme de ficção Mom e na série policial Crimes em Déli.)
As jornalistas também sofrem as consequências de uma sociedade machista. Uma delas conta que o esposo não queria que ela trabalhasse. Então, passou a roubar seu dinheiro, a ser abusivo, a agredi-la.
Produzido ao longo de cinco anos, Escrevendo com Fogo (Writing with Fire) já ganhou 25 prêmios, como o especial do júri e o do público no Festival de Sundance, nos Estados Unidos. Além do Oscar, marcado para 27 de março, disputa o troféu de melhor documentário do PGA Awards, da Associação dos Produtores dos EUA, que será entregue neste sábado (19).
Thomas e Ghosh acompanham a transição do Khabar Lahariya do jornal impresso para as plataformas digitais. Se no começo algumas integrantes da redação nem sabiam ligar um celular, hoje a equipe comemora o enorme sucesso de seus vídeos no YouTube — a estatística mais recente mostrada no filme indica 150 milhões de visualizações, graças a um trabalho ancorado sobretudo na luta por democracia e justiça, responsabilização e transformação ("Jornalismo não é só um negócio", diz Kavita Devi, editora-chefe e cofundadora).
O campo de atuação também aumentou. A repórter Suneeta Prajapati, por exemplo, cobre o problema da mineração ilegal e ouve que um trabalhador que havia denunciado as condições precárias e perigosas foi apedrejado até a morte. Meera consegue uma entrevista com Satyam, o jovem líder dos Yuva Vahini, uma milícia ligada a políticos que pregam o fundamentalismo religioso, o que inclui ataques às comunidades muçulmanas — "A Índia será automaticamente próspera se proteger as vacas sagradas", diz o sujeito, que anda sempre com sua espada à mão. A jornalista comenta:
— Esses grupos querem tirar o foco da corrupção do governo. Querem nos manter polarizados para que não questionemos suas falhas.
A violência contra a mulher sempre volta à tona. Ao entrevistar um candidato do BJP, o Partido do Povo Indiano, ao governo de Uttar Pradesh, a repórter vai direto ao assunto:
— Uma menina de seis anos e uma idosa de 80 anos foram estupradas. que providências o senhor vai tomar?
Durante a cobertura das eleições gerais de 2019, que garantiu a reeleição do primeiro-ministro Narendra Modi (BJP), focado em nacionalismo hindu e desenvolvimento, alguém vai apontar a contradição de se referir ao país como "Mãe Índia".
E, após ver o cadáver de uma vítima de estupro, Suneeta expressará aos documentaristas o que é ser mulher na Índia:
— Às vezes tenho medo. As mulheres são injustiçadas em todos os lugares. Parece um pecado nascer mulher. Primeiro, ela é tratada como um fardo pelos pais. Depois, vira escrava do marido. A vida da mulher é tão frágil. Você viu quanto sangue?